A polémica que se criou é, infelizmente, um excelente caso para estudo de argumentação.
Como é possível contestar argumentos baseados em valores? De um lado, defendem-se as caricaturas pelo princípio da liberdade de expressão. Do outro, ataca-se quem as fez, as publica e as defende, com base no princípio da dignidade e do direito à imagem (neste caso, pela negativa, já que a religião muçulmana não permite a representação em imagem do seu profeta Maomé).
Neste caso, será que o argumento da defesa da liberdade de expressão não se vira contra os seus próprios defensores? Não é o que os muçulmanos estão a fazer, expressando-se da forma que julgam ser a melhor para mostrar a sua indignação? Mesmo quem critique o argumento da força (usado por quem destrói embaixadas, por exemplo) pode ser alvo dessa crítica, porque usa o argumento da força da comunicação social sem se preocupar com as susceptibilidades que fere.
O jornal «El Mundo» argumenta assim: "Uma reacção de protesto, por ser violenta, não deveria gerar uma desculpa, mas sim a defesa firme da liberdade de expressão, um dos pilares de qualquer sistema democrático. (...) Essa liberdade tem limites mas são os estabelecidos pelas leis que podem até ampliar-se se necessário. Mas seria um grande erro assumir como próprias as normas de outros, entre elas a proibição de representar graficamente a Maomé, só para evitar ofender os intolerantes".
Não concordo. Há um princípio tão básico da democracia que é constantemente esquecido: «a minha liberdade termina onde começa a liberdade dos outros». Compreendo ambas as partes mas tendo a reprovar a forma como, após as primeiras demonstrações de indignação, ostensivamente se deitam mais achas para a fogueira. O respeito pela dignidade dos outros tem que estar sempre presente numa argumentação racional. Se esse princípio é quebrado, cria-se uma espiral de defesa-ataque de dimensões e resultados imprevisíveis.
Sobre este assunto, escreveu José Gil no ensaio «Maniqueísmos e fundamentalismo» da revista Visão de 16.02.2006:
"O bem e o mal não se repartem em Ocidente e Oriente, ou inversamente. O imperialismo, a intolerância, os poderes tirânicos e a opressão existem de um lado e do outro. E o maniqueísmo leva ao totalitarismo e ao esmagamento das liberdades. Não é o Ocidente em bloco que defendemos, quando defendemos a liberdade de expressão e, para além dela, a liberdade de pensar; nem é contra o Oriente em bloco que nos elevamos. Mas é por qualquer coisa que atravessa os países ocidentais e orientais, a liberdade de existirmos juntos para inventar e construir a nossa casa Terra".