novembro 05, 2022

Mudança da hora – reflexões, diáclases, para onde vamos?

Estudo de Lourenço Moura e João Bastos

O ser humano é um ser gregário que ao longo da história foi bastante bem sucedido trabalhando em equipa, assim juntando as incompetências necessárias para que o seu grupo (Nota 0) alcançasse os seus objetivos, por mais insanos que fossem.
Houve sempre os que mandavam fazer (Nota 1), os que se esforçavam por executar as tarefas (Nota 2) e os que, pela força, obrigavam os anteriores a fazer o que lhes era mandado (Nota 3). Nunca faltaram argumentos a justificar que assim fosse. No início a argumentação tinha uma base religiosa, em que a autoridade do monarca, ou similar, advinha da vontade divina, inquestionável, irrevogável e não auditável. A palavra do rei era a “via verde” (Nota 4) para acesso imediato às forças da vida e da fertilidade. O sol, os rios e os astros curvavam-se perante ela. Outros tempos!
Ao longo dos séculos, com o evoluir das estruturas sociais, este tipo de justificação foi perdendo credibilidade mas, em contrapartida, surgiu uma complexa rede de especialistas, que na linguagem corrente são normalmente designados por “gestores”, que sustentam os seus argumentos decisórios, não nos oráculos dos deuses do antigo Egipto ou da Idade Média europeia, com provas dadas, mas em relatórios de “consultores”, normalmente externos, que determinam as linhas estratégicas orientadoras de um futuro incerto e imprevisível (sic) e que regem o nosso dia a dia.
Assim, vivemos hoje no meio de um corrupio de modas, no olho de um furacão de modernidade, cuja acentuada miopia e astigmatismo nos fazem saltar de modelo para modelo. Se as empresas são centralizadas sugere-se que descentralizem. Se estão focadas no cliente, propõem que reflitam sobre todas as “partes interessadas” (Nota 5), que raramente coincidem com as partes interessantes (Nota 6). Se tem uma certificação da qualidade, há que pensar numa certificação des egurança e saúde no trabalho. De seguida uma certificação ambiental e, porque não há (ainda) certificações em resiliência, uma certificação de sustentabilidade. Claro que deve também ter um plano de continuidade do negócio que lhe permita responder a catástrofes. E se mesmo assim ainda continua ativa, como decerto com todas estas reflexões a gestão ficou dispersa e ineficaz, há que voltar a centralizar e recomeçar tudo de novo… É o ciclo da vida a fechar-se, qual rotunda com dois sentidos de trânsito.

Poderá não parecer, mas a mudança da hora legal é uma decisão que se encaixa nesta panóplia de modas. A mudança de hora Primavera-Verão e a mudança Outono-Inverno.
Quando a hora era medida pelo sol, de forma empírica, através da sombra de uma vara espetada no chão ou num quadrante solar, não havia como mudar a realidade. Trabalhava-se de sol a sol. À noite dormia-se e velava-se pela continuação da espécie, se as hormonas estivessem favoráveis.
Mesmo quando a tecnologia permitiu que a humanidade dispusesse de um mecanismo a que chamamos “relógio”, a ninguém passou pela cabeça que fizesse algo que não fosse representar, de forma mais prática, o que a natureza em dias nublados não permitia.
Eis se não quando um grupo de consultores de gestores, iluminados pela luz do sol que outrora iluminou a vara, decidiu avançar com uma proposta disruptiva em termos de experimentação social: Por que não mudar a hora, já que o mundo atravessa um marasmo sem nada que nos preocupe e se corre o risco desta nobre classe (consultores) cair no desemprego?
O principal argumento surgia sólido: a poupança de energia. Constatámos, entretanto, que tal não é líquido! Sabemos atualmente que, se essa poupança existe, é tão residual face aos grandes consumos energéticos das indústrias modernas que não faz sentido como argumento. Outra justificação afirmava que a mudança da hora legal favorece a economia e o funcionamento dos mercados. Este sim, é um argumento difícil de rebater. Os mercados representam, atualmente, o papel das pretéritas divindades. Se os mercados o dizem, a hora muda e as forças da vida e da fertilidade ganham novo alento. O mundo pula e avança (Nota 7)!
O processo de decisão que conduziu à mudança da hora não está suficientemente documentado. Em Portugal esta questão tem vindo também a ser tratada pelo Ministério das Finanças (Nota 8) estando os autores desta reflexão convictos de que a argumentação tenha sido muito bem sustentada, para o que terão contribuído seguramente as indústrias vínicas, em particular a nível dos produtos destilados.
Debate-se nestes últimos anos de forma cada vez mais intensa a suspensão desta prática. Tudo leva a crer que em breve se retome o normal ciclo da luz solar. Mas é de antever que esta mudança acarrete contrapartidas de outra ordem. O que se ouve já, à vista desarmada, nos corredores dos Ministérios, é que isso só irá acontecer quando os nossos amigos gestores e consultore sencontrarem novas formas de complicar as nossas vidas, como, por exemplo, definindo limites para a curvatura das bananas (Nota 9).
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Nota 0: Família, tribo, empresa, loja maçónica, etc.
Nota 1: Reis e equivalentes, CEO, coordenadores de estágios, etc.
Nota 2: Escravos, servos, estagiários, etc.
Nota 3: Exército, polícia, autoridade tributária e aduaneira, etc.
Nota 4: Inovação introduzida em Portugal em 1991 para facilitar a cobrança a clientes de serviços de mobilidade pela Via Verde, detida em 60% pela Brisa, em 20% pela SIBS e em 20% pela Ascendi.
Nota 5: Tem implícito que se reflita sobre as partes desinteressadas, que são a maioria.
Nota 6: “Malheureusement”, dirão os francófonos.
Nota 7: Há quem argumente que primeiro avança e depois pula, mas essa alternativa parece ser menos eficaz.
Nota 8: Tempo é dinheiro!
Nota 9: Afinal parece que esta regulamentação já existe

Lourenço Moura e João Bastos