janeiro 27, 2008

A minha oitava carta de trás da serra na revista Perspectiva

Olá,

Não tens respondido às minhas cartas mas eu entendo-te, porque sei que nestes últimos meses tens andado distraído com a Europa, essa mulheraça que tanta atenção exige e não perdoa que se poise o pé em ramo verde. Pois eu confesso-te que tenho andado sem paciência nenhuma com esta história do Natal começar em Outubro. Antes dizia-se que "Natal é quando o homem quiser" mas agora é quando o comércio decide. E é pena que ninguém tenha autoridade para acabar com esta pessegada do consumismo cego. É que vocês aí por Lisboa têm cargos pomposos mas para o que realmente é importante... pouco ou nada mandam.
Ontem à noite estivemos a aquecer as almas à volta do madeiro. Como os corpos também estavam enregelados, soube muito bem o garrafão de tintol que o Quatro Papos-secos levou. Enquanto o Dentes ajeitava umas brasas para assar um chouriço, o Zé Léu comentou: "isto de beber em copos de plástico até estraga o sabor do vinho, além de depois irem para o lixo por não serem reutilizados". A Mininha concordou: "se fossem só os copos de plástico... mas não. Fala-se tanto em preocupação pelo ambiente mas cada vez se faz mais lixo". O chouriço estava a ser virado e a conversa é que estava em brasa. O Betes relembrou-nos quando íamos à noite com as vasilhas de latão buscar o leite a casa de quem na altura criava uma vaca leiteira: "Agora é tudo em pacotes de cartão e plástico. As pessoas já nem sabem de onde vem o leite... e a nata não está lá". Como tu sabes, o meu fígado nunca foi grande coisa e o leite directo da vaquinha sempre me deu umas crises de que o leite de pacote me livra. O que eu fui dizer... "Porque agora compras leite mas o que bebes é água", atirou certeiro o Careca, fazendo jus aos seus dotes de caçador.
Já o Dentes cortava o chouriço em rodelas que colocávamos nas nossas fatias de pão centeio mas continuámos a falar sobre o paradoxo do desenvolvimento e do ambiente. O Dadinho, que como sabes tirou o curso de economia aí em Lisboa, falou-nos de um tal de Thomas Malthus: "Foi um economista britânico que já no início do século XIX alertou para o facto de as populações humanas crescerem em progressão geométrica enquanto os meios de subsistência só podem crescer em progressão aritmética. Ele previu a incompatibilidade entre o crescimento e a disponibilidade de recursos".
O Heitor, que veio passar o Natal à terra e te manda um abraço, deu a sua opinião: "Ao querer-se que os alimentos sejam limpos, higiénicos e não manipulados, salvaguarda-se de facto a saúde pública. Mas o ambiente é que paga, com os materiais de manuseio e embalagem em cartão, plástico, folha-de-flandres e esferovite, na sua maioria usados só uma vez e que vão logo para o lixo". Enquanto outra chouriça e uma farinheira de assar já estavam a passar pelas brasas, perguntámo-nos todos se não seria benéfico voltar um pouco às raízes, com menos caixas, sacos, pacotes,... pois o bem estar não pode ser confundido com comodismo. E, como diz o meu patrão, "a comodidade paga-se". Neste caso, com uma espiral caótica de lixo de que já sofremos as consequências. "Mas as futuras gerações serão ainda mais penalizadas. E já não se vai lá com travagens. Só mesmo fazendo marcha-atrás em alguns aspectos da nossa vida em sociedade", vaticinou o Plicas.
"Mas como", perguntei eu, "se a tendência é cada vez mais para a normalização e para a proibição de tudo o que fuja aos regulamentos?"
Eu não sei se esperava uma resposta séria de alguém, mas esta malta não consegue estar muito tempo sem a conversa descambar. O Chico Padeiro concluiu: "Tenho saudades do tempo em que mau ambiente era quando o Betes se distraía depois de uma feijoada!"
O que nos vai valendo ainda é este espírito que nos dá o conseguirmos ver as estrelas quando o céu, à noite, está sem nuvens. Coisa de que tu, às tantas, já nem te lembras.
É pena que não queiras vir até cá. Vinhas connosco cantar as Janeiras, que é sempre mais uma boa ocasião para comermos, bebermos... e pormos a conversa em dia.
Despeço-me com um brinde: à saúde e à amizade.

Paulo Proença de Moura
Página on-line da revista «Perspectiva». Na secção das Crónicas estão disponíveis todos os meus textos anteriores.

janeiro 15, 2008

A irrelevância da filosofia

Um artigo de Desidério Murcho publicado no jornal «Público» de hoje:

"A filosofia é irrelevante, num certo sentido. No sentido psicológico em que a generalidade das pessoas se está nas tintas para o escrutínio cuidadoso das suas convicções. Mas, nesse sentido psicológico, quase tudo é irrelevante para quase toda a gente: quase ninguém no mundo tem paciência para aprender a dirigir uma orquestra, ou para saber física quântica, ou para conduzir táxis ou para fazer pão.
Os filósofos ocupam-se do estudo cuidadoso das nossas convicções e crenças mais básicas. Tão básicas que, por vezes, não temos sequer consciência de que as temos: apenas agimos aceitando-as como pressupostos óbvios. Eis alguns exemplos: pensamos que o mundo não foi criado há dez minutos, com todos os falsos indícios para nos fazer pensar o contrário; pensamos que as outras pessoas têm uma interioridade como a nossa, não sendo meros autómatos; pensamos que o que acontece no passado é um bom guia para o que acontece no futuro, e que, por isso, a água que ontem nos saciou a sede hoje não vai envenenar-nos.
Os filósofos ocupam-se, em grande parte, do estudo destas convicções profundas. E um dos aspectos que mais nos interessam é a justificação. Sem dúvida que a justificação é irrelevante para a generalidade das pessoas. As pessoas não acreditam em todas aquelas coisas por haver ou deixar de haver boas justificações para elas. Mas, para os filósofos, é irrelevante que para a generalidade das pessoas as justificações sejam irrelevantes. Para o maestro, também é irrelevante que para a maior parte das pessoas saber dirigir uma orquestra seja irrelevante. Não é irrelevante para o maestro.
Pensa-se por vezes que a filosofia serve apenas para pôr uma cereja de erudição e autoridade em cima do bolo das nossas convicções mais queridas. Mas isto é perverter a filosofia. A atitude filosófica por excelência é a atitude socrática de examinar a nossa vida, pois "uma vida não examinada não vale a pena ser vivida", como Platão (427-347 a.C.) escreveu na Apologia, p. 38a. Este trabalho filosófico é irritante, incómodo, irrelevante? Talvez. Mas é isto a filosofia - e não elucubrações que visam a adesão irreflectida do ouvinte, reformulando com palavras caras os preconceitos que nos são mais queridos. Filosofar é destruir preconceitos e não perfumá-los com o bálsamo da moda.
A atitude socrática deu origem à física, à história e à musicologia, entre outras coisas, e ainda está na base destas actividades. A maior parte das pessoas não tinha grande interesse em justificar a convicção de que os objectos caem; nem em justificar a convicção de que a Terra está imóvel. Mas algumas pessoas deram-se a esse trabalho. E hoje compreendemos melhor o mundo por causa dessa atenção à justificação. O que Sócrates queria dizer é que a vida será emocionalmente mais pobre se não dermos atenção à justificação das nossas crenças mais profundas. Essa atenção liberta-nos do nosso paroquialismo emocional. Transforma-nos em cidadãos do universo."

Desidério Murcho

[rapaz novo - só vai fazer 43 anos em Maio - mas já com muita obra feita, o Desidério Murcho teve a pachorra de me orientar com pistas valiosíssimas e rectificações, juntamente com o professor Correia Jesuíno, na minha tese de mestrado - «Argumentação falaciosa e mudança organizacional» - em que defendi a aproximação da gestão à filosofia, nomeadamente através do domínio da argumentação racional pelos elementos das organizações]