abril 30, 2014

Ucrânia, Europa - A nova tragédia eslava do Velho (in)Continente

Se um dia, e o tempo passa a correr, na vizinha Espanha se instalasse (de novo) um poder fascista ou apenas expansionista que entendesse cobiçar o território português?
E se esse poder dispusesse de um arsenal nuclear e aproveitasse um momento conturbado, como por exemplo a destituição forçada de um governo daqueles que os povos são incentivados a derrubarem, para somar a Olivença mais umas generosas fatias aquém fronteira recorrendo para isso a violentos soldados mascarados?
E se da chamada comunidade internacional pouco mais viesse do que o apoio moral, sanções em pequena escala, devidamente balizado pelo peso castelhano em diversas economias de aliados potenciais e ficássemos, na prática, entregues a nós mesmos e com o poder em parte confiado a extremistas?

A caldeirada acima parece tão ficcionada como pareceria poucos anos atrás a qualquer cidadão ucraniano aquilo que está a acontecer no seu país, num tãoVelho Continente que já se revela quase senil.
O exemplo da Ucrânia, olhado com relativa indiferença pelos restantes europeus (ainda que a nível institucional assim não pareça), é o mais recente exemplo do quanto a História nem sempre vira páginas de um mesmo capítulo. As surpresas, os aparentes impossíveis, explodem nos rostos incrédulos dos eternos optimistas (um clássico) como fruto dos contorcionismos a que mesmo numa democracia normal o poder se presta ou apenas como consequência de um desastre natural de maior dimensão.
É num instante que se esboroam os laços entre vizinhos, a estabilidade, a paz que julgamos sempre eterna e depois é o que se vê.

A montanha russa

Agora é a Ucrânia o epicentro de mais um tornado de acontecimentos que resultam em mudanças que produzem alterações radicais e, em última análise, destroem os equilíbrios precários entre nações ou entre regiões e instalam um inferno na vida de pessoas como nós.
A relevância dos enquadramentos históricos, das justificações de circunstância e de todas as patranhas que adornam este tipo de intervenções externas nos destinos de outrem (sim, as dos nossos aliados americanos cabem neste pacote) é quase nenhuma.
Importante é o facto de um povo europeu estar refém do espectro de uma guerra civil que seria o prelúdio de uma invasão anunciada por quem tenta dividir para reinar. Uma população deste mesmo continente que um dia quis domesticar o mundo inteiro, com a vida em risco, com o futuro comprometido, com a pátria por um fio.

A roleta ucraniana

É esse o aspecto que me parece sobrepor-se aos demais. Nenhum argumento cola para branquear a hostilidade russa ou a hipocrisia da UE e do grande polícia mundial que, oportunista, entendeu meter o bedelho onde nem a própria aliança a que pertencemos deveria ter intervido sem absoluta certeza dos passos a dar a seguir. No meio de um novo braço de ferro ao bom velho estilo da guerra que também se serve fria está mais uma nação a caminho de se ver tão devastada como quaisquer outras apanhadas no centro do furacão que se formou sem ninguém o prever.
É a população da Ucrânia quem sairá a perder, na ressaca do que julgava ser uma bonita revolução em defesa de um modo de vida que parece agradar à maioria mas foi votado diferente nas urnas que elegeram o presidente que entenderam depor.

E é esse para mim o único assunto que importa, o único interesse que urge salvaguardar.
Se o banho de sangue acontecer, a União Europeia que ladra alto em euros mas, pela debilidade da sua coordenação e mesmo da sua comunhão de interesses, não morde sem a anuência ou mesmo a intervenção do poderio militar norte-americano poderá tentar lavar as mãos como Pilatos mas nunca formatar a consciência colectiva que registará desta trapalhada, como a História, apenas mais um episódio triste na novela do seu processo de inevitável desagregação.

abril 27, 2014

«Grândola, Vila Morena! Meu sinal de alerta» - Mamãe Coruja




Grândola, Vila Morena!
Meu sinal de alerta.
Armem-se todos de cravos:
Enfim, a Liberdade desperta.

Grândola, Vila Morena!
Sabem aqueles que vêm à luta,
Ancestrais foram contidos,
Servindo aos luxos. Plena labuta.

Grândola, Vila Morena!
Nunca mais serás proibida
Hoje e sempre na lembrança,
Da História não ficarás esquecida.

Da ditadura fascista,
Das guerras com irmãos, tantos anos.
Não queríamos fogo nas armas...
Só cravos e amor, cantamos.

Com cravos vermelhos, quisera,
Estar à tua espera, Soares.
E que por toda Lisboa querida:
Grândola, Vila Morena, entoassem.

(Criado, agora, com carinho da Mamãe Coruja)
Blog Chama a Mamãe

abril 25, 2014

25 de Abril, sempre!

Aqui vos deixo o meu poema para este Abril, com estes cravos 



não era nada, quase nada, e era Abril

não era nada
quase nada
e era Abril
flor sem tempo entretanto mais urgente
invadindo-nos a alma de repente
amorosa
airosa
mas febril

era um cravo ardente e a arma em punho
era um olhar furtivo e tão contido
a surgir na madrugada destemido
era a nossa mão erguida em testemunho

era um ser sem ser que a pátria era
era um ser sem querer de estar à espera
era um andar pelas ruas clandestino
e era de homem o olhar – de alma o menino

e houve um santo e uma senha na alvorada
a erguerem-se numa só 
feitas à estrada
as vontades de ser livre e ser inteiro
a rasgarem entre o denso nevoeiro
o alvor
a alegria
a liberdade
e mostraram ao país outra verdade

não era nada
quase nada
e era Abril
e esse cravo no cano de uma espingarda
era a voz que gritava em vozes mil
deste povo que envergando a verde farda
soube dar novas cores ao mês de Abril.

- Jorge Castro

abril 21, 2014

«Aquilo que eu não fiz» - Tiago Bettencourt



Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Não fui eu que gastei
Mais do que era para mim
Não fui eu que tirei
Não fui eu que comi

Não fui eu que comprei
Não fui eu que escondi
Quando estavam a olhar
Não fui eu que fugi

Não é essa a razão
Para me querem moldar
Porque eu não me escolhi
Para a fila do pão
Este barco afundou
Houve alguém que o cegou
Não fui eu que não vi

Eu não quero pagar por aquilo que eu não fiz
Não me fazem ver que a luta é pelo meu país
Eu não quero pagar depois de tudo o que dei
Não me fazem ver que fui eu que errei

Talvez do que não sei
Talvez do que não vi
Foi de mão para mão
Mas não passou por mim
E perdeu-se a razão
Todo o bom se feriu
foi mesquinha a canção
Desse amor a fingir
Não me falem do fim
Se o caminho é mentir
Se quiseram entrar
Não souberam sair
Não fui eu quem falhou
Não fui eu quem cegou
Já não sabem sair

Meu sonho é de armas e mar
Minha força é navegar
Meu Norte em contraluz

A posta numa traição à tua medida

Traição é um conceito medonho. Tanto pelo que implica como pela sua evolução enquanto metástase de algo ruim que germina em quem trai.
É como uma erva daninha filha da puta que é uma outra bem enraizada no que alguém tem em si de pior. É descendente directa da cobardia, como se comprova pela sua tendência para acontecer de surpresa. Ou melhor, pela inevitabilidade do seu sucesso por via da maior vulnerabilidade das vítimas desse autêntico golpe de estado numa relação próxima.
No entanto, nem sempre a traição (como qualquer outro crime, que o é) compensa. Muitas vezes a pessoa que trai aponta para as costas dos outros mas o karma dirige a seta para os seus próprios pés, pois até uma besta aprende facilmente a trair.

Como qualquer das evidências das múltiplas falhas no carácter de muitos de nós e respectivas aplicações práticas na arte de prejudicar outrem, a traição expõe na autoria os medíocres e no resultado, quando menos bom, desmascara os imbecis.
De resto, esta combinação imbatível de rabos de palha (ring a bell, isto da palha?) na personalidade arrasta o/a pequeno traidor/a para um nível ainda mais rasteiro do que possa presumir quando quase se esvai na congeminação de um esquema traiçoeiro para torpedear alguém.

A pessoa, já de si pequena na intenção, vai trilhando um rasto enquanto serpenteia pelo areal e acaba por se denunciar de forma involuntária, sem capacidade para abarcar tudo o que um plano inteligente engloba, acabando por reduzir o seu gesto malévolo ao estatuto infame da pequena traição.
A pequena traição, assumidamente a mais óbvia na mesquinhez de entre o alargado leque de opções na matéria, é quase um rótulo de “estúpido/a” na testa seja de quem for que a pratique. Se é traição é indigna, se ainda por cima é pequena (quando se caracteriza pelo efeito bombinha de Carnaval – só assusta um nadinha e em nada interfere com o rumo dos acontecimentos senão pelo facto de irritar a pessoa pequeno-traída) então ficamos perante uma triste figurinha que se vê exposta na dura realidade da sua irrelevância até no âmbito da malvadez.

Uma pequena traição pode assumir muitas formas e nem sempre nasce de um impulso hostil. Pode traduzir medo, despeito, insegurança e outras fraquezas que se somam à do cérebro limitado em apreço, como é natural despontar como dano colateral da inveja, do ciúme ou simplesmente de um complexo de inferioridade mais extrovertido nas suas manifestações. Nunca implica ódio sequer, de tão modesta nas emoções. É uma espécie de desabafo encharcado pela impotência de quem falha porque não tem por hábito tentar (em sentido lato). E quando a pessoa arrisca não sabe nem consegue aprender como se faz.
De facto não se faz, a ninguém, porque é feio e é mau e tem uma hipótese de sucesso proporcional à da inteligência de quem escolhe trair pequeno porque não chega lá (seja onde for) e instintivamente reconhece a menor valia que o espelho só disfarça no reino da fantasia que é o mundo como gostam de o pintar consigo na pele de protagonistas.
E são, mas de um filme marado, categoria B, tão ilusório que só atrai nuvens de ridículo para cima das cabeças vazias das actrizes e dos actores, ou mesmo o desprezo de quem às tantas já não lhes suporta a representação.

É desconfortável constatar a dimensão exígua de uma traição quando a pessoa é alvo da mesma. Isto porque no conflito pela primazia entre sentimentos negativos que tal inspira é sempre a ligeira náusea que acaba por se sobrepor.

abril 17, 2014

O massacre do Colmeal

...Os que resistiram foram passados pelo fogo da metralha, mortos e as casas incendiadas...


Escombros da antiga aldeia do Colmeal
A história relativamente recente da aldeia do Colmeal, - hoje fantasma, situada na zona de Figueira de Castelo Rodrigo, no sopé da  Serra da Marofa, fundada por imemoriais povos, tão distantes quanto a medida em milénios antes de Cristo pode atestar e que a recente descoberta de pinturas rupestres confirma-, pode ser vista como uma metáfora terrível sobre o mecanismo da “dívida” e logo da “culpa”, temas de total e absoluta actualidade.
Ao termo "massacre" utilizado no título do post cabe todo o significado literal.
É da História que as sucessivas invasões provocam a reacção dos invadidos, a resistência à ocupação das terras que lhes pertencem, confrontos violentos e massacres dos vencidos.
Por diversas vezes foi a aldeia do Colmeal assim como as outras aldeias trespassada pelas hordas. Já em período de ocupação nacional, conheceu “doações” sucessiva a ordens e nobres, obrigando assim os que consideravam as terras suas, a ter que pagar tributos aos “senhores das terras”. As sucessivas deambulações de títulos de propriedade passaram pelas mãos dos ilustres Cabrais, família do descobridor oficial do Brasil, Pedro Álvares Cabral que teria inclusivamente nascido na aldeia. Em 1540 D. Afonso V deu-lhe carta de Couto e já era então senhor da povoação João Gouveia.
As sucessivas mudanças ao longo dos séculos- e que seria fastidioso enumerar- culminam na situação que de forma particular nos interessa e que tem no ano de 1957 o palco dos acontecimentos dramáticos.
Estava-se em pleno Estado Novo sob o regime político do fascismo nacional. Há muito que se tinha abolido o sistema feudal, não havia senhores da terra. Agora havia proprietários e arrendatários intermediados por feitores e rendeiros.
Mas no dia sete de Julho, pelas dez da manhã, um destacamento de vinte e cinco militares da GNR comandados por três oficiais, fortemente armado, fez cumprir uma ordem judicial e despejou pela força os habitantes das casas que há séculos lhes pertenciam. Os mais prevenidos fugiram para os montes e povoações nos arredores. Os que resistiram foram passados pelo fogo da metralha, mortos e as casas incendiadas. Uma pequena comunidade com pouco mais do que sessenta pessoas, mas com milénios de existência, foi num espaço de horas reduzida a nada.
Como foi possível isto acontecer?
Em 1912, findos os foros, as terras passaram a pertencer por escritura a uma herdeira dos Condes de Belmonte.  Quis a desgraça que nos anos cinquenta desse Século a então proprietária tivesse conseguido
Igreja do Colmeal.
modificar, com a ajuda de um ardiloso advogado sem escrúpulos, de nome Manuel Vilhena, o estatuto da povoação que passou assim pelos seus artifícios,  de aldeia para quinta privada.
As casas da aldeia, secularmente propriedade dos seus habitantes, passaram a pertencer a Rosa Cunha e Silva a qual cedeu a exploração da sua "propriedade"  a um rendeiro que passou a cobrar ao aldeões  segundo as velhas regras dos antigos forais e sesmarias, exigindo rendas e impostos sobre todos os bens, casas, vacas, galinhas, burros etc. que os aldeões possuiam. Não será necessário insistir em que dos parcos rendimentos que das suas posses provinham, pouco mais do que a subsistência básica poderiam garantir, mas os aldeões postos perante as constantes subidas exigidas pelo rendeiro, passaram a ter que solucionar o grave problema de não terem rendimentos para  fazer face a uma repentina "dívida", espoletando as desavenças que culminariam na desgraça.
Sob o pretexto de que estariam em anos de atraso pelo facto de um subarrendatário estar em incumprimento, a proprietária levantou um processo judicial o qual, perante a ignorância e ingenuidade dos aldeões, crentes nos seus óbvios e ancestrais direitos, foi decidido a favor da exequente sob forma da sentença de acção de despejo colectivo....
 
Cabe aqui um aparte e uma conclusão. Não adianta acomodarmo-nos com a distância no tempo nem desenterrar o chavão ora de indignação ora de muleta de conforto e que consiste em dizer "... como é possivel em pleno Séc. X ou Y..." ou "...tal facto só foi possível por estar-se em pleno Sec.N..., ou em plena Idade Média ..."  ou " ...em pleno Fascismo..." etc. etc. etc.
As injustiças acontecem sempre e em qualquer tipo de regimes, o Poder é sempre rodeado de corruptos, de idiotas úteis, e de oportunistas sem escrúpulos, e a indignação pega sempre na espuma dos tempos que se vivem.
No caso supra-citado, podemos dizer que a idiota útil foi a proprietária que teve de vender as propriedades para pagar ao oportunista, o advogado, o qual  terá certamente corrompido determinado funcionário no Conservatório de Registo Predial.
Se serve para alguma coisa o relato deste drama, não sei, mas estableço um rápido paralelo entre ela e  esta dívida que de repente temos que pagar sem que nunca se tenha auditado as suas origens, negociado as condições e observado a dignidade mínima dos caídos em desgraça. Os que são despejados todos os dias das suas casas, que resistem e são postos na rua pela força, os que se suicidam e os outros que fogem do país, replicam em escala geral em "pleno Sec XXI"  o pequeno grande drama acontecido " em pleno Séc XX"...
Também aqui, hoje, neste preciso instante, em pleno Séc XXI, somos rodeados e governados pelos mesmos de sempre, os oportunistas que fazendo uso dos idiotas úteis, corrompem todo o sistema, não se coibindo de - tal como na tragédia do Colmeal- ir até ao mais íntimo: a dignidade.
A Justiça, essa é sempre cega, surda e muda....
 
 

abril 15, 2014

O parapeito

Foto: Virgina Gálvez


Num parapeito faz-se a capital do mundo, o ponto de partida ou a meta de uma chegada. E tem sido assim…de partidas e chegadas e de momentos em que não pensamos em nada. Absolutamente nada. Pode parecer estranho mas é verdade que um parapeito não é uma coisa qualquer, é onde se deixa assentar um peito cheio de tudo, é onde se vê o cair da noite ou o romper do dia, é onde se ouvem e soltam vozes. Uma linha, uma dimensão que muda abruptamente e ali fica tantas vezes entre dois lugares, a realidade e o sonho, a linha onde se fita ou se finta a vida, num misto de equilíbrio e desafio entre os pés firmes e o abismo.

O parapeito que muitas vezes dividido mas poucas vezes partilhado, suporta esperas, esperanças, dúvidas, mas mantêm-se ali firme, robusto, e mesmo que pareça oferecer apenas um palmo, está ali como um verdadeiro amparo de peito.

Um lugar, um reduto, uma ilha que surgiu despontando réstia de destino como se toda a nossa vida tivesse acontecido para que aqueles momentos de partilha se proporcionassem.

E bebemos. E sorvemos tudo o que o destino nos quis dar.

Vi sempre um lado livre naquele parapeito, livre mas não desocupado, é como se estivesse reservado desde sempre, para suportar o peso de uma alma debruçada que procura forças para viver a luz dos dias.


abril 14, 2014

Quando o RSI ajuda mas também é factor de exclusão

-"Isto não está nada fácil, sabe?". Foi com estas palavras que uma senhora, que até há alguns dias era uma perfeita desconhecida, interrompeu o meu trabalho no balcão de atendimento de uma empresa cliente em Castelo Branco. Apesar da interrupção ser inconveniente, resolvi não impedir indelicadamente a continuação do monólogo. Afinal, pensei que seria fácil manter-me concentrado no meu trabalho fingindo que a estava a ouvir. Estava enganado.

-"Vim buscar comida ali à cantina social. Infelizmente tenho de o fazer, não tenho outra hipótese porque não tenho dinheiro para comprar comida. O pior é que a comida nem sempre é boa e há dias ficámos todos doentes lá em casa, eu, o meu marido e a minha filha. As outras pessoas que lá vão também se queixam da qualidade da comida mas temos medo de falar porque, se o fizermos, vão-nos chamar de ingratos.Vamos lá ver o que me calha hoje na sorte."

A minha atenção começou a divergir da minha tarefa e fui ficando cada vez mais interessado naquilo que aquela senhora me dizia. Afinal, há coisas às quais é impossível ficar indiferente, sobretudo por aquilo que, a palavras tantas, ela acabou por dizer:

-"O senhor tem alguém na sua vida? Se tiver, namore! Aproveite! Eu e o meu marido deixámos de dar beijos há já algum tempo. As nossas noites são passadas a chorar. Eu tinha uma loja de trabalhos de costura que sobrevivia com dificuldade e acabei por fechá-la. Maldita a hora em que o fiz. O meu marido foi despedido pouco tempo depois porque o Governo mudou as regras (sic) e ficámos sem nada. Sabe o que é não ter nada? Moro numa cave e isso é tudo o que nos separa de sermos sem-abrigos. Não temos nada. Comida, detergentes, gás, não temos nada disso. É uma sensação horrível. Não o desejo a ninguém, nem à pior pessoa do Mundo."

Pergunto-lhe se não recebe nenhum tipo de apoio.

-"Sim. Recebo 150 euros do Rendimento Social de Inserção. Vai tudo para a renda e ainda assim não é suficiente. Depois falta o resto. No mês passado ainda fiz 30 euros a arranjar umas peças de roupa. Este mês não sei como vai ser. Às vezes venho aqui e esta senhora (recepcionista da clínica) dá-me alguma carne. Estou-lhe grata do fundo do coração."

Nesta altura, senti-me tentado a pegar na carteira para lhe dar algum dinheiro para poder comprar alguma comida. Pareceu adivinhar os meus pensamentos.

-"Sabe de uma coisa? Eu sentir-me-ia muito melhor com 3 euros ganhos a trabalhar do que com 5 euros que o senhor eventualmente me pudesse dar, porque é disso que precisamos, eu e o meu marido. Trabalho. Eu tenho muito jeito para trabalhos de costura e também para restauro. Faço restauro de livros, tapetes, carpetes,.... Imagine que até restauro tapetes de Arraiolos! O pior é que tento divulgar o que faço e não resulta. Tenho um blogue [ver aqui] e já distribuí panfletos. As pessoas até dizem "Você faz tanta coisa? Qualquer dia encomendo-lhe uns trabalhos" mas a campainha nunca toca."

-"Mas também não é só isso. As pessoas que recebem RSI são discriminadas e chegam até a ser tratadas como criminosas. Eu sinto isso.Nem imagina o quanto é duro."

Para terminar a conversa, fala-me de uma ideia que lhe foi sugerida por uma amiga: contactar a produção de um desses programas de televisão que têm ajudado pessoas em situação semelhante. O único obstáculo que a impede de o fazer é a vergonha. Pergunto-lhe porque não o faz. Afinal, o pior que poderá acontecer é receber um "não". Seja como for, estará sempre a bater a duas portas: a da solidariedade e a da promoção do seu trabalho. Ela fica a pensar durante algum tempo e, antes de se ir embora, remata:

-"O senhor é capaz de ter razão. Vou pensar seriamente nisso. Entretanto, se precisar ou conhecer alguém que precise dos meus serviços, agradeço que me contacte. Obrigado por este bocadinho e desculpe lá pelo tempo que lhe roubei. Mas sabe? Faz-me bem desabafar."

Foi assim que eu conheci a Dª Clara. Fiquei a vê-la ir embora e a pensar em tudo o que me tinha dito, aquilo que aqui reproduzi e outras confidências que seria indelicado partilhar. Perguntei-me quantas pessoas estarão neste momento nas mesmas condições, vivendo de uma solidariedade que chega a ser um factor de exclusão e sonhando com o dia em que a campainha finalmente tocará. Servir-lhes-á de conforto, sabendo que perderam tudo ou quase tudo nos últimos anos, ouvir os nossos governantes afiançar que o país está melhor? 

abril 06, 2014

Se tivermos que andar a reboque dos alemães, por esta causa e desta vez até aceito!

Partido de Merkel contra mudanças da hora na Europa

A União Democrata-Cristã, liderada por Angela Merkel, pronunciou-se, este sábado, a favor do fim da hora de verão na Europa e da manutenção da mesma hora durante todo o ano.
Reunida em congresso em Berlim, a CDU aprovou por ampla maioria uma proposta que pedia que deixe de se adiantar ou atrasar os relógios duas vezes por ano, em março e em outubro, como se tem feito na Europa com o pretexto de poupar energia.
O congresso da CDU destina-se a aprovar o programa eleitoral para as europeias de 25 de maio e a proposta contra a mudança da hora foi apresentada por um pequeno grupo local, não sendo a votação vinculativa.

Jornal de Notícias - 2014-04-05

E é neste lodo que a porca da política nos faz chafurdar!

Manuel Monteiro e Medina Carreira no programa "Olhos nos Olhos" da TVI24

abril 02, 2014

Há sempre um Google escondido que espreita por si…

Esta história de andarmos todos controlados é apenas uma paranóia do tipo mito urbano ou, muito ao contrário, é uma realidade plausível e, até, palpável que nos traz a todos sob um tacão opressor qualquer, de quem não conhecemos rosto ou intenções?

Vem isto ao caso de, ao escrever uma mensagem dirigida a alguns amigos, referindo um anexo por mim enviado em mensagem anterior, ter recebido, com perplexidade angustiada, a seguinte informação da empresa Google (Message from webpage), no momento de efectuar o respectivo envio:

«- Queria anexar ficheiros?

Escreveu «anexei» na sua mensagem, mas não há ficheiros anexados. Enviar mesmo assim?»

Junta-se print screen do descrito, pois não estou aqui para enganar ninguém:



Desde que me conheço que não me recordo de alguma vez ter apanhado um susto destes.

Repare-se: estão a acompanhar o que eu escrevo, em tempo real, sabem se estou ou não a remeter anexos e nem sentem qualquer pudor ao fazerem-se «ouvir» através deste alerta que, ainda para mais, é suposto ser no meu interesse…

Perante evidências deste calibre, como poderá a Google fazer-nos acreditar que este tipo de controlo não existe ou, algo pior, que não poderá vir a ser utilizado por quem quer que nele esteja interessado – pagando à Google, claro, em dinheiro, em géneros, outras contrapartidas ou exigências – e sempre com o meu total desconhecimento?

Vejamos: se eu escrever a um amigo, descrevendo que adquiri uma viatura que é uma bomba, que a minha vizinha tem umas pernas que são um atentado, ou que um certo argumento dinamitou uma conferência sobre couves portuguesas, o que tenho por mais certo é passar a ser seguido por uns gajos vestidos de preto, sapatos grandes e de óculos escuros, mesmo em dias de chuva. Isto se não for liminarmente engavetado para averiguações por suspeitas de terrorismo!

Mas quem são os gajos – sim, porque uma decisão destas parte sempre de um gajo qualquer, em qualquer parte – que se arrogam o direito de assim vasculharem o que cada um escreve, como escreve, para quem escreve, sem acautelarem uma metáfora, permitirem uma ironia ou facilitarem uma literária flor de estilo?

Como dizia o outro: e não se pode exterminá-los? (Uupssss… lá me saiu outro termo suspeito…).

As amigas

Um dia escrevo sobre as amigas. Sobre as gargalhadas quando partilhamos cenas de novelas. Sobre as dislexias. Sobre os beirões. Sobre as nossas cumplicidades. Sobre as opiniões e as sugestões. Sobre o metermos o bedelho e o que sofremos. Sobre viagens e passeios. Sobre feiras e festas. Sobre homens e gajos. Os que passam. Os que ficam. Os que nunca vêm e os que nunca foram. Sobre os segundos ao telefone. Sobre as horas ao telefone. Sobre os enganos de cada uma. Sobre o êxito e o sucesso. Sobre lágrimas de dor. Sobre lágrimas de euforia. E principalmente lágrimas de muito fervor pois os beirões não perdoam. Sobre os segredos de cada uma. Sobre as madrugadas ganhas. Sobre os filmes e as séries. Sobre expetativas. Sobre roupas e vernizes, cabelos e sapatos. Sobre saldos. Sobre sonhos. Sobre Roma. Sobre jantares e almoços. Sobre livros. Sobre frustrações e desejos. Sobre filhos. Sobre homens e gajos (acho que já tinha referido mas fica aqui na mesma). Sobre esperança. Sobre poesia e prosas. Sobre músicas. Sobre canções. Sobre canções do bandido e bererés. Sobre projetos e planos. Sobre o fundo do poço e a solidão. Sobre as piadas que só nós conhecemos. Sobre concertos. Sobre promessas. Sobre festivais. Sobre medo. Sobretudo sobre medo. Sobre força. Sobre união. Sobre a vida. Sobre elos. Sobre amor. Sobretudo sobre amor. Amor que sentimos umas pelas outras que é para lá dos buracos negros. Amor que não nos cansamos de dizer, transmitir e fazer sentir principalmente quando tantas vezes o medo, a angústia e a frustração se apoderam de grande parte de nós.
Um dia escrevo sobre as amigas que são tudo em todos os momentos.
Mesmo quando o feitio é o que é. Cada uma delas sabe o que esperar de cada uma, em cada momento.
Um dia escrevo.

abril 01, 2014

Da memória

Lembro-me de ser pequenina e de ter o cabelo comprido e rebelde até meio das costas. Nas tardes de calor, entrava de rompante pela porta adentro e corria pelo corredor que me parecia enorme. A cozinha era o destino. Matar a sede era o objetivo. A minha mãe, sempre com aquele penteado curto, loiro olhava para mim e dizia-me para pelo menos ir lavar as mãos e a cara antes de tocar o que quer que fosse na cozinha. E ia. Quando voltava da casa de banho tinha um copo cheio de água que me saciava a sede. Em cima da bancada a ventoinha de sempre. Sei que durou largos anos. Mesmo quando as modernices vieram para arrefecer ou aquecer as casas, aquela ventoinha manteve-se fiel à cozinha e àquela bancada. Eu adorava colocar os joelhos em cima do banco e aproximar-me para sentir o vento refrescar-me a cara molhada onde não se distinguiam as gotas doces das salgadas. Da minha mãe ouvia sempre um “cuidado” e eu mantinha a distância certa. Adorava aquela sensação. E ria-me e falava com a minha mãe e trauteava músicas frente à ventoinha deixando que ela alterasse e “trepidasse” a minha voz. E ria-me. E riamo-nos. E depois voltava para a rua, para o Sol, para o calor, para os amigos e amigas que me esperavam para continuarmos as fantásticas aventuras que tantos livros escreveriam e que tantos filhos e netos vão escutar.