julho 21, 2007

A minha quarta carta de trás da Serra na revista Perspectiva

Olá,

Continuas sem responder às minhas cartas mas eu compreendo-te. Como se já não bastassem os nervos em franja dessa vida e trabalho na capital, ainda deves estar a recompor-te do terceiro salão erótico. Mas está descansado, que eu não conto nada à tua mãe. Ainda ontem estava eu na esplanada do Pielas, a conversar com o Manchinha e ela estava a sair da missa vespertina, com o senhor padre.
Há dias tivemos uma patuscada na quinta do Panasco com uns amigos nossos que vieram de Coimbra visitar-nos. Não conheciam o Dadinho e ficaram muito admirados com algumas das peripécias dele que lhes contámos. Como quando ele ainda era pequenino e ia com o pai (o saudoso ti'Manecas da mercearia) de carro, de Caria para a Covilhã. Ainda não havia a auto-estrada da Beira Interior e a recta de Lamaçais era, para os nossos olhos, enorme nos seus 700 metros. Para mais, a seguir a essa recta havia – e há – outra recta, mais curta. Pois o Dadinho, admirado com a extensão da recta de Lamaçais, disse:
- Ó pa-pa-pai, que recta tã-tã-tão grande!
- Pois é, filho – condescendeu o ti'Manecas, mais preocupado na lista de compras que tinha de fazer na Covilhã.
Quando o ti'Manecas fez a curva e entrou na outra recta, o Dadinho admirou-se ainda mais:
- E continuuuuuuua!...
Ou quando o Dadinho foi acampar com o Lourencinho Filho Mais Velho do Professor Rogério para a Nave de Santo António, que tu sabes, mas muitos não, que é um vale glaciário na Serra da Estrela. Estavam os dois a dormir, quando o Lourencinho ouviu o Dadinho a tentar abrir desesperadamente a tenda, procurando os fechos precisamente no lado oposto àquele em que estavam. O Lourencinho apercebeu-se que o Dadinho estava aflito e, com medo dos estragos potenciais no interior da tenda, lá lhe deu a indicação para conseguir abrir o fecho... e continuou a tentar dormir. Mas o Dadinho, ao assomar a sua cabeça da tenda, gritou para o Lourencinho:
- Ó Lourenço, anda ver que-que-que paisagem ma-ma-maravilhosa!
O Lourencinho achou tão estranho... mas como o Dadinho insistiu, lá foi espreitar. Um carro branco estava estacionado mesmo à frente da tenda. E o Lourencinho teve que lhe pedir que pusesse os óculos:
- Pensavas que era neve, era?
Mas o Dadinho esclareceu:
- Nã-nã-não. Pen-pen-pensei que era o luar re-re-reflectido nos Cântaros...
E quando o Dadinho estava a jogar futebol com os amigos? Tu deves lembrar-te, que também lá estavas. Aproximou-se isolado da baliza adversária, um companheiro passou-lhe a bola... e ele estatelou-se no chão, sem ninguém lhe tocar, com a bola incólume a escapulir-se sem qualquer perigo para o guarda-redes. Enquanto os adversários se riam da cena e de alívio, os companheiros de equipa acorreram, num misto de cólera por perderem um golo certo e de gozo pela figura triste dele:
- Então, Dadinho, escorregaste?
- Nã-nã-não foi nada disso – esclareceu – ê-ê-eu ia chutar a bo-bo-bola com o pé esquerdo, mas não cheguei lá-lá-lá. Por isso ten-ten-tentei com o pé direito. Só-só-só depois é que me apercebi que esta-ta-tava com os dois pés no ar!...
E lembras-te das festas de aniversário dele? Memoráveis! A mãe sempre nos serviu uns belos acepipes. Mas o maior sucesso sempre foi o chouriço, uma delícia. Lembras-te de cantarmos umas quadras feitas por nós e com a música do «Parabéns a você»? Numa delas cantámos todos assim: “Da-da-da-da-dadinho / és-és-és o maior / não deixas teu chouriço / ga-ga-ganhar bolor”.
Um abraço para ti deste que por cá vai andando,

Paulo Proença de Moura
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