Um artigo de Desidério Murcho publicado no jornal «Público» de hoje:
"A filosofia é irrelevante, num certo sentido. No sentido psicológico em que a generalidade das pessoas se está nas tintas para o escrutínio cuidadoso das suas convicções. Mas, nesse sentido psicológico, quase tudo é irrelevante para quase toda a gente: quase ninguém no mundo tem paciência para aprender a dirigir uma orquestra, ou para saber física quântica, ou para conduzir táxis ou para fazer pão.
Os filósofos ocupam-se do estudo cuidadoso das nossas convicções e crenças mais básicas. Tão básicas que, por vezes, não temos sequer consciência de que as temos: apenas agimos aceitando-as como pressupostos óbvios. Eis alguns exemplos: pensamos que o mundo não foi criado há dez minutos, com todos os falsos indícios para nos fazer pensar o contrário; pensamos que as outras pessoas têm uma interioridade como a nossa, não sendo meros autómatos; pensamos que o que acontece no passado é um bom guia para o que acontece no futuro, e que, por isso, a água que ontem nos saciou a sede hoje não vai envenenar-nos.
Os filósofos ocupam-se, em grande parte, do estudo destas convicções profundas. E um dos aspectos que mais nos interessam é a justificação. Sem dúvida que a justificação é irrelevante para a generalidade das pessoas. As pessoas não acreditam em todas aquelas coisas por haver ou deixar de haver boas justificações para elas. Mas, para os filósofos, é irrelevante que para a generalidade das pessoas as justificações sejam irrelevantes. Para o maestro, também é irrelevante que para a maior parte das pessoas saber dirigir uma orquestra seja irrelevante. Não é irrelevante para o maestro.
Pensa-se por vezes que a filosofia serve apenas para pôr uma cereja de erudição e autoridade em cima do bolo das nossas convicções mais queridas. Mas isto é perverter a filosofia. A atitude filosófica por excelência é a atitude socrática de examinar a nossa vida, pois "uma vida não examinada não vale a pena ser vivida", como Platão (427-347 a.C.) escreveu na Apologia, p. 38a. Este trabalho filosófico é irritante, incómodo, irrelevante? Talvez. Mas é isto a filosofia - e não elucubrações que visam a adesão irreflectida do ouvinte, reformulando com palavras caras os preconceitos que nos são mais queridos. Filosofar é destruir preconceitos e não perfumá-los com o bálsamo da moda.
A atitude socrática deu origem à física, à história e à musicologia, entre outras coisas, e ainda está na base destas actividades. A maior parte das pessoas não tinha grande interesse em justificar a convicção de que os objectos caem; nem em justificar a convicção de que a Terra está imóvel. Mas algumas pessoas deram-se a esse trabalho. E hoje compreendemos melhor o mundo por causa dessa atenção à justificação. O que Sócrates queria dizer é que a vida será emocionalmente mais pobre se não dermos atenção à justificação das nossas crenças mais profundas. Essa atenção liberta-nos do nosso paroquialismo emocional. Transforma-nos em cidadãos do universo."
Desidério Murcho
[rapaz novo - só vai fazer 43 anos em Maio - mas já com muita obra feita, o Desidério Murcho teve a pachorra de me orientar com pistas valiosíssimas e rectificações, juntamente com o professor Correia Jesuíno, na minha tese de mestrado - «Argumentação falaciosa e mudança organizacional» - em que defendi a aproximação da gestão à filosofia, nomeadamente através do domínio da argumentação racional pelos elementos das organizações]
Lembro-me de uma aula de Epistemologia, orquestrada pelo Prof. João Maria André, em que, caloirinhas que éramos, tentámos, com a tua ajuda, ensaiar exactamente isso: a aproximação e a interacção entre a Filosofia e a Gestão.
ResponderEliminarFoi das coisas que, academicamente, me deram mais gozo fazer. Obrigada outra vez (e eu sei que ainda falta o bacalhau à Braz sem espinhas, mas nunca é tarde para cumprir promessas).
:)
E acho que foram vocês mesmo que me pegaram o bichinho da ponte (entre filosofia e gestão).
ResponderEliminarJá agora, conheces o meu livro?
Não, infelizmente não...
ResponderEliminarSe quiseres comprar, faço-te um preço de amigo ;-)
ResponderEliminarBasta que me mandes a tua morada por e-mail: jpcpmoura@gmail.com.