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Estatuto da Carreira Indecente
Olá
Há tanto tempo que não te escrevia...
Como tens andado, no meio deste rebuliço que invade a nossa habitual pacatez e nos faz «rufar os tambores»?
Desculpa mas, mesmo sabendo que tu tens os teus próprios problemas, vou aproveitar o teu ombro amigo para desabafar.
Como sabes, a minha mulher é professora do ensino secundário. Vinte anos depois de uma vida de cigano, em que ela correu praticamente o país todo, optou por ficar numa escola, mesmo sendo ainda distante de casa, mas que lhe dava a estabilidade por que ela sempre ansiou.
O que se tem passado nestes anos mais recentes, nem precisas que te conte... ou até precisarias, porque o que é divulgado pelo governo, pelos sindicatos e pela própria comunicação social é muito deturpado. Na minha empresa, estou farto de ser alvo de chacota dos meus colegas quando me atiram com lugares-comuns como "os professores não querem trabalhar", "os professores estavam era mal habituados", "os professores não querem ser avaliados" e por aí fora. Revolta-me sempre que alguém critica os professores porque "um professor do meu filho balda-se às aulas e ninguém faz nada". Ai, sim? E os pais alertaram a escola? "Nós?! Para os nossos filhos terem problemas?!"
Quando pergunto aos meus colegas se na nossa empresa todos são competentes, estranhamente calam-se.
Estou farto! De ler artigos nos jornais como no «Económico» de 21 de Fevereiro de 2010, «Professores portugueses trabalham menos», quando em letra miudinha dizem que "se contarmos o trabalho fora da escola, os professores são a classe que mais horas trabalha, quando comparado com outras profissões". E mesmo a conclusão do título é falaciosa: usam um estudo da OCDE que refere que os professores portugueses, na sala de aula, gastam em média 18,5 horas por semana, contra 17,2 de média da OCDE e 16,4 da União Europeia. E que o número de horas por semana na escola é de 34,1 em Portugal, quando na OCDE são 30,5 e na UE 30,4. A conclusão deste artigo, obtêm-na do trabalho escolar total: 38,7 horas semanais em Portugal, contra 43,6 da OCDE e 42,2 da União Europeia. Consegues dizer-me como medem eles o trabalho fora da escola? E não achas estranho que os professores em Portugal gastem 4,6 horas semanais a trabalhar em casa, quando na OCDE (dizem) gastam 13,2 e na União Europeia 11,7 horas?! Olha, eles que venham a minha casa fazer o trabalho da minha mulher em 4,6 horas semanais!
Estou farto! De pagar arranjos da pintura do carro dela porque os alunos lho riscam (e diz-me ela que é normal), de estar sempre a comprar papel, tinteiros de impressora (e tanto que ela gasta...) e outro material, de ter comprado um computador portátil para ela levar para a escola ("dá-me jeito") e que vem de lá sempre cheio de vírus...
Estou farto! Das constantes reuniões dela marcadas fora de horas ("tem que ser"), das noites e fins-de-semana que não podemos aproveitar "porque tenho de trabalhar" e da consequente indisponibilidade dela para a família ("estou de rastos").
Estou farto! De reler o Estatuto da Carreira Docente, que sensatamente diz que os professores devem ter os recursos necessários à sua actividade. E o tempo é o recurso mais importante de todos! Estou farto que isto esteja só no papel. Desafio-te a encontrares outra profissão por conta de outrem em que o trabalhador tenha que comprar os seus instrumentos de trabalho e pagar as despesas em serviço. Aliás, julgo que se deveria criar para os professores a categoria de «trabalhador por conta de outrem... mas pouco».
Desculpa o tempo que te roubei e recebe um abraço do
Paulo Proença de Moura
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Ilustrações - Grande Mestre Raim