fevereiro 03, 2010

Carta aberta à senhora Ministra da Saúde

Transcrevo a carta aberta do meu amigo Jorge Castro. Que, como ele próprio diz, "esta minha porventura pouco razoável exposição de intimidades e privacidades possa contribuir para um Portugal bem mais ameno, que nos justifique Abril e atenue os Dezembros do nosso descontentamento":

"Carta aberta à senhora Ministra da Saúde - Serviço Nacional de Saúde, o estado demencial a que nos conduziu o primado da Economia

À Senhora Doutora Ana Jorge,
Ministra da Saúde

Por volta do dia 15 de Dezembro de 2009 – há cerca de mês e meio, portanto – a minha Mãe, sem que nada o levasse a supor, perdeu subitamente a capacidade de andar.
A Mãe tem 83 anos e padece, há cerca de dezoito anos, de doença de foro oncológico, sendo assistida regularmente no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, seja em tratamentos, consultas ou exames de rotina. A situação sempre esteve, aparentemente, diagnosticada e controlada. Tem tido, assim, uma boa qualidade de vida, face à adversidade da sua doença, sem dores ou queixas especiais e levando uma vida normal.
De há cerca de três anos a esta parte notámos nós, os filhos, um decréscimo de medicamentação e, até, de exames. Não sendo nenhum de nós Médico, consideramos tal um bom indício, tanto mais que sempre acompanhámos a Mãe às consultas e nada nem ninguém nos alertou ou explicou sobre eventual evolução da doença.
Perante essa incapacidade súbita de locomoção – e porque em recente consulta de Clínica Geral, no Centro de Saúde que a assiste, perante queixa de dores nas costas e perda de sensibilidade nos dedos da mão direita por parte da Mãe, a Médica sugeriu a aquisição de um colchão e, posteriormente, prescreveu Voltaren «para ver se passava» - recorremos a consulta privada que, de imediato, promoveu um recurso a Neurologia… do qual resultou que, em 24 horas, a Mãe foi encaminhada de urgência para o Hospital de São José, em Lisboa, para ser submetida a uma bateria de exames, tendo o Especialista avisado de que deveríamos contar com intervenção cirúrgica imediata. Isto ocorreu em 20 de Dezembro de 2009.
É impossível descrever a via sacra a que a nossa Mãe foi submetida desde então, sem que ela ou os filhos tivéssemos qualquer voto na matéria. Tentarei sintetizar:
- dia 17 de Dezembro – internamento no Hospital de São José, em Lisboa;
- dia 18 de Dezembro – transferência para o Hospital São Francisco Xavier, onde iniciou uma série de exames;
- dia 20 de Dezembro - transferência para o Hospital Egas Moniz, para ressonância magnética e eventual cirurgia – quer uma, quer outra ocorreram sem que os filhos, presentes diariamente, ou, sequer, a própria, fossem previamente informados sobre o que quer que fosse. O único contacto registado, por parte da instituição, foi para me questionarem (aqui «descobriram» o meu telemóvel) se estava disposto a pagar 195 euros para um colete ortopédico, a utilizar no pós-operatório, colete não comparticipado pelo SNS…
- dia 4 de Janeiro de 2010 – decorrendo Fisioterapia e recuperação pós-operatória (a intervenção cirúrgica teve lugar em 28 de Dezembro de 2009), a metástases extensíssimas na região dorsal, já com grave infiltração óssea, sou informado pelo Hospital de que a Mãe tinha tido alta e estava já a caminho do Hospital de Cascais – suposta área de residência (?) - onde ficaria na Unidade de Oncologia. A pressa desumana com que tudo isto ocorre, leva a que a Mãe fosse despejada pelos próprios serviços do Hospital Egas Moniz, num expediente no mínimo desumano e, no limite, criminoso, no Serviço de Urgência do Hospital de Cascais, sem qualquer referenciação, aí permanecendo cerca de 24 horas, sem alimento ou medicação, perante o seu e nosso desespero. Valeu aqui algum expediente e a habitual movimentação de influências, vulgo cunha… ou poderemos imaginar que a Mãe ainda hoje por lá andaria perdida. Ainda assim, de três dias de espera numa maca nos corredores do Hospital não a salvámos - e, recorde-se, em pleno período pós-operatório. Nem da repetição de um rosário de exames mais ou menos agressivos, para redefinir o quadro clínico!
A partir daqui pensar-se-ia que a situação se estabilizaria. Mas ainda não! Para além da consulta de Oncologia a que já fora submetida no Egas Moniz, teve consulta desta Especialidade também no Hospital de Cascais, depois no Instituto Português de Oncologia e, por fim, no Hospital dos Quadrantes, em Carnaxide, onde foi prescrita uma bateria de 10 sessões de Radioterapia… em ambulatório! Para tal a Mãe teve alta do Hospital de Cascais no próprio dia do primeiro tratamento!!! Quatro consultas de Oncologia no espaço de 10 dias, agravadas pela necessidade de deslocação do doente ainda em recuperação da intervenção e sem capacidade de locomoção, para quê…?! Duvidarão os Médicos ou as Instituições uns dos outros ou trata-se de algum perverso ou maquiavélico esquema montado para incrementar proventos à custa de sofrimentos alheios?
Também aqui não tivemos voto na matéria, sempre nos sendo apresentado cada passo como dado adquirido.

Éticas, deontologias ou mera arte de viver em comunidade são, assim, trucidadas pela paranóia dos custos ou da rentabilização cega e, afinal, anacrónica assumindo, através do cumprimento cego de diktats de que ninguém sabe localizar exacta proveniência, foros do recurso à «esperteza saloia» para o descarte de mais um fardo em que está constituído cada paciente… porque já lá está uma imensidão deles à espera de vez, cabendo a cada um o «direito» à sua dose de mau trato e desconforto.
E a Mãe esteve sempre no Serviço de Medicina. Nem conseguimos apurar se a Unidade de Oncologia de Cascais tem, afinal, camas próprias que justificassem o encaminhamento feito pelo Hospital de Egas Moniz.
Importa acrescentar que, face ao lamentável insuficiente número de ambulâncias existente na Grande Lisboa, em cada deslocação o doente é deixado para tratamento e fica a aguardar, em maca, que a ambulância regresse… o que chegou a levar seis horas (!) de espera. Os bombeiros têm ordens estritas para acorrer a outros casos, deixando o doente no tratamento – que, no caso, demora escassos 15 minutos - o que também representa um conceito distorcido de bom serviço prestado e de rentabilização mais do que duvidosa face ao trânsito caótico de Lisboa! Importa, também, sublinhar que neste longuíssimo mês de horrores, contam-se já por cerca de duas dezenas as deslocações de ambulância, entre instituições e desvarios diversos.
Com todas estas andanças e maus tratos, a Mãe desenvolveu um quadro de escaras de grande gravidade, desidratação e assustadora infecção urinária com óbvia necessidade de tratamento urgente - em pleno internamento hospitalar! E assim teve alta!
Conseguimos, por força dessa alta, um lugar num lar que nos oferece as melhores condições de assistência total face a este pavoroso desenvolvimento. Enfrentamos e assumimos os encargos sem hesitações. Felizmente para nós, paciente e filhos, nunca foi esse o problema. Mas nunca nos colocaram, sequer, uma perspectiva de alternativa. Existe uma «lógica» hipócrita - que será até de defesa pessoal - a impelir cada profissional da saúde a fingir ignorar o que se passa a jusante do seu próprio acto. A «bola» é passada e, a partir daí, lavam-se as mãos...
Pelo caminho ficam as sucessivas ausências de aflição nos nossos locais de trabalho, para acorrer… nunca se sabe bem a quê, mas com as decorrentes mazelas profissionais que são conhecidas e que, de momento, nem contabilizámos... e lá vamos contando com a boa vontade de colegas. Fica, ainda, por referir uma imensidão de pormenores mais ou menos lúgubres, presenciados ou por nós vividos no dia-a-dia destas instituições cujo relato daria a esta missiva uma extensão que lhe retiraria utilidade.
Resta, talvez, referir que ao nível do contacto pessoal e de humanidade não há quase nada a dizer das larguíssimas dezenas de profissionais da saúde – médicos, enfermeiros ou pessoal auxiliar – com quem contactámos ao longo deste mês. Mas verifica-se, do mesmo modo, uma total impotência e falência institucionais para dar uma resposta civilizada, racional ou consequente face a um quadro como o descrito.
O paciente (leia-se, também, contribuinte) é, institucionalmente, tratado como um vulgar saco de batatas, descartável no mais curto espaço de tempo, sem escrúpulo nem redenção, mesmo que tenha os seus impostos em dia… afinal, aquilo que faz o sistema funcionar, quando não são desbaratados os recursos por parte dos responsáveis pelo poder político. Sim, porque o desperdício deste andar em bolandas tem, também ele, custos insondáveis, irracionais e em puro desperdício, para além da notória barbaridade perpetrada sobre o estado de saúde do paciente.
Todos temos a nossa hora. A nossa Mãe também terá a sua. Exige-se, apenas, a dignidade devida a um ser humano, num regime de direito e democrático. Preceito da Constituição que nos regula, bem como da Declaração Universal dos Direitos do Homem que nos deve nortear. Não é o que se está a passar no nosso Serviço Nacional de Saúde. E não estamos, sequer, em qualquer estado de guerra.
E eu sinto uma profunda vergonha pelo País que estou a legar ao meu filho!
Aqui eu deixo, à superior consideração de V. Excelência, não apenas como espúrio desabafo, mas como testemunho presencial e denúncia, a entender como acto de cidadania, que permitirá V. Exa. que eu divulgue, no interesse da comunidade. Nem será, neste contexto, relevante o anúncio do nome da paciente, como não será curial factualizar, ainda mais, as ocorrências descritas, por não haver aqui intuitos de algum modo persecutórios. Tão só isto: o testemunho que possa revelar-se útil para uma inversão de valores que é urgente.


Jorge Castro"

6 comentários:

  1. Livra!
    Fiquei sem palavras!
    M. Augusta

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  2. Nem por isso. Contei-te cinco (e só não são seis porque não escreveste Maria por extenso e não sei se devo contar o M. como palavra).

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  3. Valham-nos os Jorges Castros deste país!

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  4. Pois... mas contam-se por... um dedo...

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  5. Grato, meu caro, pelo destaque e divulgação.

    Na verdade, o meu apelo ao «ombro amigo» provou-me, uma vez mais, as intensas virtudes deste meio de comunicação.

    Sem querer - ou talvez não... - formou-se uma cadeia solidária, de que o Persuacção é um excelente exemplo, e que teve, pelo menos, o mérito enorme de nos transmitir a sensação de que não estamos completamente sós.

    Nos dias que vão correndo, esse é um capital inestimável.

    Abraço.

    Jorge Castro

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  6. Sós não estamos, Jorge. Orgulhosamente não estamos.

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