QUINTA-FEIRA, 11 DE JANEIRO DE 2018
O fim da planície e a morte do azeite: um dos maiores crimes ambientais de Portugal
Há muito que não visitava a cidade que me educou e viu nascer: Beja. Recordo-a na imensidão da planície, entre a mutação persistente de um colorido que fazia desta região uma das belas do mundo. Recordo: o verde trigais; o amarelo dos pimpilhos; o branco da magarça; o roxo da sevagem; os cinzas que antecedem a chuva; o vermelho das papoilas… recordo os coelhos, as lebres, as perdizes, os bibes… Recordo o sentido da rotatividade que, contrastando, dava vida ao azul de um céu sempre puro. Um olhar sempre novo. Técnicas ancestrais de exploração da terra, não deixaram perder uma matriz ecológica que protegeu a planície e permitiu, ao longo dos séculos, alimentar a nação e manteve este lugar insólito como um dos mais belos do Mundo. Lá, onde a vista não alcança, descansava o olhar num horizonte tão longo, belo e definido.
Fui a Beja e fiquei chocada: petrifiquei o olhar na inexistência da planície. Um extenso olival, onde as árvores eram tantas que não cabiam no terreno ocupado, era apenas intervalado pela vinha plastificada e por intervenções que removeram a camada superficial, de forma profunda, do solo, na sua totalidade.
São visíveis, ainda, alterações a nível da orologia. Estes terrenos, no espaço de cinco dias, juntaram-se a outros tantos e deram origem a milhares de hectares de olival.
Não há vida na planície; não há vida nem rochas: removidas repousam num cemitério criado para o efeito. Percorri uma área de 33 km (e sei que a área é muito superior); de toda a imensidão que ladeia a estrada: existe apenas um superintensivo olival. São milhares e milhares de hectares. Do horizonte já nem há memória; o plantio impede que se vislumbre o que me pareceu: o maior crime ambiental em Portugal.
Cemitério de rochas
Fiquei incrédula com o infindável que a minha vista não alcança e decidi pesquisar: o que se passa na planície de Beja que parece incógnito ao país?
De imediato, percebo a pequenez do que visualizei. A catástrofe é muito mais grave- a ser verdade as parcas notícias de alguns dos principais meios de comunicação portugueses.
De acordo com o que li, a devastação não se limita à totalidade da flora e da fauna; engloba a totalidade do património arqueológico e paisagístico. Centenas (se não mais) de sítios arqueológicos foram profanados e destruídos: uma Necrópole da Idade do Ferro; uma ponte, um aqueduto e uma villa da época romana; um dos mais importantes “recintos de fossos” da pré-história portuguesa e muitos outros, inscritos no Plano Diretor Municipal (PDM) de Beja como área de sensibilidade arqueológica (um dos casos que relato refere-se a uma zona com mais de 18 hectares de importantes vestígios pré-históricos). A intensa mobilização dos solos, deixou visíveis materiais que comprovam a total destruição de (de acordo com o que li) centenas de sítios arqueológicos (no bloco de rega Baleizão-Quintos, as equipas do Impacte Ambiental registaram 193 ocorrências de âmbito arqueológico).
Avancemos, a minha indignação é muito grande.
Percebi que em Beja não se sai da cidade e as janelas devem estar fechadas. Ninguém viu ou tomou conhecimento do grave atentado ao património que circunda a cidade? É um caminhante que ao deparar-se com a destruição do “povoado da Salvada 10” decide contatar um arqueólogo (a planície, ainda, não viram que já lá não está); e este informou a Direção Regional de Cultura do Alentejo (DRCA). Verificada e constada a sua total profanação:
“Os proprietários foram identificados e notificados pela DRCA para suspender a intervenção para que fosse avaliada “a extensão dos danos e ponderadas as medidas corretivas” com a indicação de que a “inobservância de providências limitativas decretadas constitui crime” .
Mas não suspenderam e continuam; e continuam numa intensa e total movimentação dos solos.
É incrível. No Alentejo, conseguem-se esconder milhares e milhares de hectares de um olival superintensivo e as pessoas não vêem o que destroem: “os autarcas de Beja não receberam qualquer pedido para a plantação do olival nem para a instalação do sistema de rega”; os proprietários das máquinas são surpreendidos pelo Jornal “Público” quando este questiona sobre as profanações; apesar de alegadamente terem destruído património, não sabiam da sua existência e garantem ter cumprido a lei: “implicou rasgos na terra que “não ultrapassaram os 30/40 centímetros”- argumento contrariado pelas dimensões dos socalcos que vi e das rochas retiradas e depositadas no cemitério. A intervenção foi muito além do referido, por toda a planície.
As profanações do património histórico e paisagístico são atribuídas às culturas superintensivas de amendoeiras e olival. No entanto, pelo que observei, a vinha também me parece responsável pela danificação do património paisagístico.
Não se cansem que a história ainda é longa- infelizmente.
Após este primeiro contato com a inércia do país, decidi saber a quem pertenciam as terras e quem as explorava.
Encontrei esta referência relativamente às culturas de amendoeiras: “Prado Portugal S. A. terá arrasado “quase duas dezenas de sítios arqueológicos” para plantar amendoeiras, segundo relata o jornal”
Entre o olival, brilhava um edifício e o nome “Oliveira da Serra”: o edifício é apresentado como o maior lagar do mundo (fica bem a um país tão pequeno); “Oliveira da Serra” é o azeite que sirvo na minha mesa (doeu-me e, não havendo explicação que contrarie tudo o que fui lendo, observando e deduzindo, ficarei envergonhada).
Aqui e ali fui retirando informações. Pouco percetíveis, para mim. Compra-se, vende-se e formam-se grupos; não sabemos quando nem onde e quem fez. Pelo que percebi: a Sovena é proprietária da “Oliveira da Serra” e veicula na sua página : “ é em 2007, em parceria com a Atitlan, que se cria o projeto Elaia, cujo objetivo é a plantação de cerca de 10 mil hectares de olival”. Este projeto adquiriu olivais à SOS Corporación Alimentaria- empresa de capitais espanhóis.
O projeto Elaia destinava-se a "criar um dos maiores e melhores" olivais intensivos (200 a 300 árvores por hectare e sistema de rega gota a gota) e transformou-se em culturas superintensivas (de 1800 a 2000 árvores por hectare). Pelas minhas contas: muitos hectares têm mais do que 2000 árvores.
Não sei quem foi; mas sei que a profanação é intensa. Mesmo com o sistema gota a gota o Alqueva depressa se esgotará. Não podemos esquecer que o mar Aral (o maior do mundo) desapareceu em menos de quarenta anos devido ao cultivo do algodão; dele, não restou vida: são os químicos os reis do solo, numa área de milhares de quilómetros. É muito cedo para se saber o verdadeiro impacto da situação, na saúde dos que lá habitaram: uma vez que as mutações genéticas ocorrem essencialmente na quarta geração. Será este o destino do Alentejo? Não. Pelas dimensões da barragem do Alqueva, o Alentejo não terá dez ou vinte anos de vida.
É tão grave a situação que decidi consultar a lei. Faz-me confusão que ninguém reaja ou limite a atuação destes grupos (ou de quem, de facto, está atrás do fim de uma região tão linda). Não consigo perceber os benefícios que a região obtém da destruição do seu património e da contaminação de solos e lençóis de água. Emprego? Li tanto sobre a existência de trabalhadores, oriundos de países estrangeiros, que vivem em regime de escravatura. E quem quer um emprego que signifique o nosso fim, dos nossos filhos, netos… Estará o meu país a destruir-se e a permitir a existência de escravatura para enriquecer grandes grupos? Será que Portugal não vê o impacte ambiental das atividades desenvolvidas? Temos ministro da agricultura? Não percebo nada de política.
Consultei o site do Ministério da Agricultura e partilho o lá veiculado:
“Os compassos a usar dependem da variedade, do solo, da possibilidade da cultura ser ou não regada e do destino a dar à azeitona - azeite ou conserva.
Para azeite devem ser plantadas entre 200 e 300 árvores/ha, devendo as linhas distarem 7 m entre si, para facilitar a colheita mecânica.
Para conserva podemos plantar mais de 300 árvores/ha”
Ops! Senhor Ministro? Não vi sete metros. Sabia que as plantações destinadas ao fabrico do azeite, no Alentejo, são de 2000 ou mais árvores por hectare? Concluo que aquele que era um dos melhores azeites do mundo: passa a óleo de gota do Alqueva com o dobro dos produtos químicos.
E os sobreiros e azinheiras? Há muitos por ali. Consultei o DIÁRIO DA REPÚBLICA — I SÉRIE-A N.o 121 — 25 de Maio de 2001
“) Povoamento de sobreiro, de azinheira ou misto —formação vegetal onde se verifica presença de sobreiros ou azinheiras, associados ou não entre si ou com outras espécies, cuja densidade satisfaz os seguintes valores mínimos:
i) 50 árvores por hectare, no caso de árvores com altura superior a 1 m, que não atingem 30 cm de perímetro à altura do peito;”
Ops! Senhor Ministro da Agricultura? A lei não fala em 2000 árvores.
O Diário da Republica pode estar enganado? Porque não se faz cumprir a lei?
“Nos povoamentos de sobreiro ou azinheira não são permitidas:
a) Mobilizações de solo profundas que afectem o sistema radicular das árvores ou aquelas que provoquem destruição de regeneração natural;
b) Mobilizações mecânicas em declives superiores a 25%;
c) Mobilizações não efectuadas segundo as curvas de nível, em declives compreendidos entre 10% e 25%;
d) Intervenções que desloquem ou removam a camada superficial do solo.”
A camada superficial do solo nem sequer existe.
Artigo 19.o
Embargo
A Direcção-Geral das Florestas e as direcções regionais de agricultura poderão requerer ao tribunal competente o embargo de quaisquer acções em curso que estejam a ser efectuadas com inobservância das determinações expressas no presente diploma.
Artigo 20.o
Medidas preventivas
A Direcção-Geral das Florestas e as direcções regionais de agricultura podem apreender provisoriamente os bens utilizados nas operações ou intervenções em áreas ocupadas por povoamentos de sobreiro ou azinheira, ou por exemplares isolados destas espécies, efectuadas com desrespeito ao disposto no presente diploma e adoptar as medidas destinadas a fazer cessar a ilicitude.
Artigo 22.o
Sanções acessórias
Sempre que a gravidade da infracção ou da culpa do agente o justifique, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas pode aplicar ao infractor as seguintes sanções acessórias:
a) Perda, a favor do Estado, de maquinaria, veículos e quaisquer outros objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática da contra-ordenação;
b) Perda, a favor do Estado, dos bens produzidos pela prática da infracção, incluindo a cortiça
extraída e a lenha obtida;
c) Privação de acesso a qualquer ajuda pública por um período máximo de dois anos.”
Não se espantem: descobri que a plantação de Olival é subsidiada. Pagamos: o fim da planície; a degradação da qualidade do azeite; a poluição; a destruição da fauna, da flora e do património histórico; a existência de escravatura- e, certamente, não referi tudo.
É possível desenvolver uma região sem recurso ao crime e à escravatura- ambos ocorrem, na sua forma gravosa, no Alentejo que vos descrevi.. É esse desenvolvimento que todos queremos. A lei portuguesa não pode aplicar-se, apenas, à pessoa singular. Os grandes grupos tem a obrigatoriedade de a cumprir e o nosso país o dever de os sancionar aquando do incumprimento. De contrário, a legislação portuguesa tem que ser alterada; deve, obrigatoriamente, referir quais são as leis e quantas pessoas deve ter um grupo para não haver obrigatoriedade no seu cumprimento. Ou seja, definir um número de pessoas, a partir do qual: qualquer ação é considerada “não crime”.
Vamos continuar calados e a discutir a vida do vizinho do lado?
Sem Sorrisos
Guida Brito
Republicado por Charlie
C'um...!
ResponderEliminarEstão a fazer exactamente o mesmo que na Indonésia, onde um tremendo crime ecológico, a extinção TOTAL da biodiversidade, fauna e flora, os orangotangos, só para citar a espécie mais emblemática, tudo queimado e arrasado para as malditas palmeiras para produzir o tal óleo de palma tão queridos à Nestle, Pepsi e Coca-cola. É um crime e um suidício a muito curto prazo.
ResponderEliminarUma coisa irracional, que pruduz o esgotamento rápido dos solos em duas décadas, mas essas multinacionais criminosas ( não há outro termo) estão-se nas tintas e vão esgotando as terras umas atrás das outras, e uma vez praticamente tudo esgotado estão a exportar o modelo de hiper-super exploração intensiva para todo o mundo. Estes bandidos da azeitona transgénica apenas fazem o "benchmarking" e praticam exactamente o mesmo processo. Acabo dizendo apenas que em Espanha já esgotaram amplos territórios e uma vez esgotados vêm para Portugal fazer o mesmo. O que sobra depois é apenas o deserto, o vazio, o nada. A haver uns incêndios ecológicos, perdoem-me a contradição, era puxar fogo àquela porcaria toda.
E é por tudo. Destruírem sítios arqueológicos?! Em Caria, o proprietário de um terreno aonde existe um túmulo Merovíngio, escavado numa laje de granito, arrancou toda a pedra e deixou apenas o rectângulo do túmulo... e já dá vontade de lhe torcer os mamilos com uma tenaz!
ResponderEliminarDepois ainda há quem se indigne por se lhe chamarem filhos de puta.
EliminarTão pouco, no entanto, isso de lhe chamarmos o que são, caro Charlie... Aqui não há Estado, não há nação, não há povo. Passou a haver uma qualquer abencerragem em que todos somos imbecilmente cúmplices. Haverá, notavelmente, umas poucas raras excepções, como é o caso da autora, a quem tiro o meu chapéu.
ResponderEliminarJá não é o Portugal amordaçado, do Ary. Agora já será o Portugal violado e escravizado. Das «portas que Abril abriu» não surgirá quem ponha mão e penalize exemplarmente estes desmandos?
Como é que o outro dizia: "A História repete-se, primeiro como drama , depois como farsa", ou será ao contrário? Vão ver o que se passou no Alentejo com a "Campanha do Trigo" no final da década de 20 do século passado, em que também se foi capaz de dar cabo dos terrenos agrícolas, das rotações de culturas, e do equilíbrio ecológico,que era uma coisa que parece que nessa altura ainda não estava "na moda"... Mas agora está porra! Pelo menos para alguns ... paranóicos?
ResponderEliminarNo passado dia 14 de Janeiro de 2018 foi lançada uma Petição na Internet sobre o lema “Pela Defesa do Património Arqueológico Nacional”.
ResponderEliminarMarco Valente
Enquanto os trabalhos que envolvem empresas estatais (louve-se o exemplo da EDIA SA para o Alto e Baixo Alentejo), têm tido o necessário acompanhamento arqueológico, salvaguardando sítios, artefactos e, sobretudo, a nossa Memória e História Colectivas, verificamos que outros trabalhos de igual índole não têm tido o necessário acompanhamento arqueológico, conduzindo à destruição de dezenas, ousamos dizer, centenas de sítios a nível nacional, de que são exemplo a vintena de locais arqueológicos destruídos recentemente para plantação de um amendoal:
https://www.publico.pt/2017/10/09/local/noticia/beja-ponte-romana-e-sitios-arqueologicos-foram-destruidos-para-plantar-amendoal-1787981
Busca ser um alerta para a Sociedade em geral, para que, com o passar do tempo, se vá tornando mais esclarecida face a estas problemáticas, pois quando um sítio arqueológico é destruído já não há forma de voltar atrás e deixá-lo tal como se encontrava, para usufruto como é seu Direito, das futuras gerações.
Para motivar o Debate Parlamentar e combater a impunidade com a qual os prevaricadores agem, a coberto da passividade do sistema actual, que é obsoleto nestes termos.
O texto da Petição encontra-se em Português (Pré-acordo ortográfico) e em Inglês (pois muitos foram já os colegas e anónimos de todo o Mundo que juntaram a sua à nossa voz em Defesa da Arqueologia Nacional).
Caso concordem com o Fundamento da Petição, assinem e divulguem por favor, a Arqueologia Portuguesa agradece.
http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT88019
Este é o desafio que nos colocamos a nós próprios, enquanto Arqueólogos e Trabalhadores ligados ao Património Arqueológico, Cultural e Identitário Nacional. Se o vencermos, os beneficiados seremos todos nós, cidadãos, municípios, empresas e o país no seu todo.
Assim, assegurando a defesa dos bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais e no exercício de direitos legalmente consagrados, nomeadamente ao abrigo do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa, solicitam à Assembleia da República que decida discutir esta matéria, propondo ao Governo que corrija a orientação e compromisso que assumiu nestes domínios.
Na expectativa de uma breve resolução, atentamente
Os signatários