dezembro 01, 2007

A opinião de António Barreto sobre a ASAE... e uma pequena observação final minha

"A MEIA DÚZIA DE LAVRADORES que comercializam directamente os seus produtos e que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vai agora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham, preparam-se, depois da chegada da “fast food”, para fechar portas e mudar de vida. Os cozinheiros que faziam a domicílio pratos e “petiscos”, a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatas fritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos os que cozinhavam em casa e forneciam diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes, podem sonhar com outros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados à sua maneira vão ser liquidados.
A SOLUÇÃO FINAL vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velho mundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa os computadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos e matérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente está condenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têm Estado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se no governo nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e da Inovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelas multinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios do açúcar.
EM FRENTE À FACULDADE onde dou aulas, há dois ou três cafés onde os estudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam às cartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!
Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas de louça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.
Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata que não sejam industriais e embalados? Proibido.
Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtude fazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos, compotas, pão e enchidos.
Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde, coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido.
Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.
Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido.
Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre é proibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas.
Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas, alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido.
Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça? Acabou. É proibido.
Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias de fiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido.
Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido. Só industriais.
É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais e com fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos.
Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pela vizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.
AS REGRAS, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para as descrever.
Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem de haver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.
Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.
Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortar cebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.
No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta “produto não válido”, mesmo que esteja vazia.
Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para uma sanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessa operação.
Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda.
Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.
Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico, papel ou tecido.
Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célula fotoeléctrica.
As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes por dia e devidamente registadas.
As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionário certificado.
Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos? Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.
Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e das bancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a hora do corte.
O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes de leite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.
TUDO ISTO, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde. Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, com estas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, pois claro."
António Barreto
«Retrato da Semana» - «Público» de 25 de Novembro de 2007


Hoje fui almoçar a um restaurante que mudou de gerência. Os novos donos falaram-me do que encontraram na cozinha, quando lá entraram pela primeira vez. E bastou-me ouvir isso para aceitar melhor o que a ASAE faz. E para não ser tão anti-ASAE como era até ontem...

5 comentários:

  1. Obrigado pelo teu comentário. E o teu post sobre este assunto também merece um post aqui.

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  2. O António Barreto é um senhor. Concordo com ele na generalidade e contigo Paulo, na especialidade. Quando fui comer leitão á BoaVista (recentemente) vi chegar o empregado que prepara os 'leitanitos'. Chegou muita brilhantina no cabelo, chaves do carro e carteira na mão. Despiu o blusão, arrumou as tralhas e ala que se faz tarde, fez-se aos leitanitos mesmo debaixo dos nossos narizes ligeiramente contorcidos. Perdoamos-lhe pelo bem que nos soube mas.....

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  3. Genericamente sou contra a 'normalização' do não normalizável. Por este andar, o ritmo de higiene diária - que, segundo consta, por exemplo nos ingleses é supostamente semanal - também virá a ser normalizada.

    Já estou a ver-me, entrando no meu local de trabalho, com várias etiquetas confirmando:

    1 - que me lavei hoje;
    2 - que ontem já me tinha lavado;
    3 - que os slips que uso hoje estavam lavados ontem;
    4 - que não calquei merda de cão, nas últimas 24 horas, com os sapatos que trago calçados ;
    5 - que a minha barba de três dias corresponde a um padrão estético definido pela norma comunitária XPTO e não a mero indício de desmazelo ou pressa matinal;
    6 - que não sou portador de doença infectocontagiosa há, pelo menos, cinco anos;
    7 - que sou casado com comunhão de adquiridos e não impende sobre mim nenhum processo litigioso de foro conjugal pela parte de cônjuge ou de terceiros;
    8 - que estacionei devidamente a minha viatura, conforme documento comprovativo a exibir na portaria;
    9 - que a dimensão do perímetro craniano está conforme a qualificação profissional que me está atribuída;
    10 - que não me são conhecidas atitudes violentas ou actos atentatórios do pudor há, pelo menos, 20 anos;
    11 - que a minha elevada estatura - para cima de 1m63 - é compatível com o nível de instalações que me estão disponibilizadas e, se tal não se verificar, se possuo curso pós-formação em horário pós-laboral que coadune o tamanho às instalações;
    12 - que a normal inclinação do pénis para a esquerda não excede o normativo comunitário, tendo em vista eventuais derrames danosos nos mictórios disponíveis;
    13 - que o meu inefável odor corporal não é susceptível:
    a) de provocar delírios eróticos nas colegas;
    b) de ocasionar vómito nos circunstantes;
    14 - que as peúgas não comportam nenhuma conspícua 'batata' que possa colocar em causa o bom nome da firma;
    15 - que sou detentor de um certificado que me identifica como utilizador do WC sem nunca ocupar tempo superior a três minutos e sem nunca deixar a tampa da sanita aberta;
    16 - que o meu cesto de papéis contribui para o depósito de 250 gr de papel por dia, que encaminho para a reciclagem, conforme recibo comprovante;
    17 - que os meus pais eram animais mamíferos,homem e mulher (de Lineu), heterossexuais e que fui concebido com ambos em vida...

    Basta que alguém se vá lembrando de cada uma destas coisas, que lhe passe pela cabeça que cada um dos items é relevante para qualquer causa mirífica... e que nós todos vamos dizendo amén.

    A verdade é que a legislação comunitária apresenta os caracóis como 'peixes de água doce' apenas para favorecer o seu cultivo com acesso a subsídios a favor de agricultores franceses.

    Depois, digam que é brincadeira...
    e lembrem-se da história do macaco!

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  4. Tem lógica, isso dos caracóis. Eles não precisam de levar sal?

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