fevereiro 28, 2011

ó ai ó Deolinda...

Olhai, senhores, como é diferente a bruteza em Portugal. E, também, como tanta bacorada proferida sobre o recente tema dos Deolinda, me deixa uma indizível sensação de vergonha, enquanto representante dos pais que têm toda a responsabilidade em quantas gerações rasca, ou à rasca ou nem-nem vêm produzindo nos últimos quatro decénios…

Desde fazer comparações espúrias com o José Afonso – o que é tão estúpido, anacrónico e insultuoso para o próprio como para os Deolinda, pois, como devia ser sabido, cada roca com seu fuso e cada tempo com seu uso… – até aproveitar para menosprezar ou mesmo denegrir a imagem do grupo musical, numa prática muito própria dos portugas retardados ou diminuídos mentais por razões não fisiológicas,  mas bem instalados nas tetas da porca estatal, tudo tem valido para esses mais desvairados gurus da nossa praça lavrarem as sentenças mais disparatadas a propósito… de tal despropósito.

Ouvidos, lidos ou vistos, curiosamente nenhum ou poucos, muito poucos tiveram o discernimento ou o golpe de asa de apurar, tão-somente, que o único paralelismo legítimo a considerar nestas considerações é a capacidade mobilizadora que uma canção pode ter, de súbito arvorada em bandeira de um qualquer movimento social de descontentamento que não encontra, à mão de semear, outro modo expedito de se manifestar.

Sendo que esse poder mobilizador surge quando os «mercadores» ou «mercadófilos» – entenda-se, os defensores intransigentes dos mercados – cuidavam de que a malta já estava sem capacidade de reacção, através das suas anestesiantes argumentações do fim do mundo, a muito breve trecho.

E tudo porque eles não sabem que o sonho comanda a vida, como ensinava Gedeão a quem o sabia ouvir, e que a palavra cantada é, porventura, a manifestação acordada e consciente mais próxima desse estado de sonho.

Na verdade, se olharmos, por exemplo, para uma canção como E depois do Adeus, de José Nisa (letra) e José Calvário (música), interpretada por Paulo de Carvalho, a qual, nas próprias palavras do autor da letra, foi escolhida pelos militares de Abril exactamente pela sua letra inócua, de tal modo que iludisse suspeitas da censura pidesca e da PIDE censória, e que veio a transformar-se num hino à Liberdade e, muito mais ainda do que isso, à luta pela Liberdade… enfim, tal facto deveria levar-nos a outros discernimentos.

Mas a seita das invejas e das mordomias instaladas, os bonzos do medo, da intriga e da mediocridade, tremem tanto quando alguma manifestação de massas lhes foge ao controlo e às suas «científicas previsões», que o único argumento que encontraram nas t(r)ementes cabecinhas apreensivas, foi… desmerecer os Deolinda, como se a banda tivesse tido alguma coisa a ver com aquela manifestação espontânea do público, que tanto os perturbou.

Ou como se a sua qualidade musical – positiva ou negativa, nem vem ao caso ­– é que estivesse na origem da reacção do público.

É tanto mais curioso este fenómeno quanto é interessante verificar que alguns «esquerdófilos» da nossa praça da alegria de imediato afinaram pelo mesmo diapasão…

Ai – ai os ais deste país… –, estas coisas das movimentações espontâneas do povo causam sempre muita angústia e intranquilidade a quem, nem que seja muito no recôndito do seu travesseiro, sabe e confessa que o fosso cultural entre si próprio e o tal povo, a que um dia pertenceu mas agora nem por isso, se alargou, alargou, alargou… até lhes parecer um mar intransponível onde correm o risco de naufrágio e de afogamento se alguma onda neles embater e os arrastar.

E lá tiveram de encontrar o bode expiatório nos Deolinda, tal como foi o Zeca o bode expiatório preferencial da inversão de valores do regime salazarento em que, de tanto ser o cantor perseguido, ficavam os patetas sem saber se era ele, Zeca, a causa ou o efeito dos males sociais que a (quase) todos afligiam.

Creio bem que, se ainda houvesse a Sagrada Inquisição – que ele há outras… – os bons dos Deolinda estariam a um passo do patíbulo e das chamas… Assim, apenas correm o risco de levarem com algum opinativo enxovalhado.  

De resto, todo o incipiente político sabe ou devia saber que nenhuma canção pode mudar o mundo. Mas o que muitos sabidões da política sabem bem é que essa mesma canção pode ajudar muito, em determinado momento do processo histórico, lá isso pode. E isso, eles sabem-no bem demais.

Quando transformam em carne picada laboral gerações sucessivas de jovens, sem eira nem beira em termos de segurança no trabalho, pela violação reles da legislação existente, sob o olhar cúmplice e complacente dos governantes do «centrão», e alimentando assim um cancro social que, inevitavelmente, explodirá nas mãos de todos nós, eles sabem bem demais que se trata de uma questão de tempo e de chicote. Mas um escoa-se e o outro desgasta-se.

fevereiro 26, 2011

O elogio do pijama

Se pudesse, dava aulas de pijama. E ia às compras de pijama. E ao ginásio (perdão, health club) e a entrevistas e a reuniões e a festas e a jantares de amigos.
Pretendo fazer o culto do pijama, essa farpela que todos usam e que ninguém valoriza o suficiente.
Escolher um pijama é um ritual tão solene como comprar uns sapatos. Deve ser simultaneamente confortável e elegante. Nao pode ser um pijama qualquer, tem que ser algo com que não me envergonhe de abrir a porta da rua, se tocarem à campainha fora de horas. Tem que ser algo com que goste de me ver ao espelho. E fora dele.
O pijama tem sido desconsiderado pela sociedade. Qualquer farrapinho velho o substitui. Afinal, pensa-se, é para dormir, e a dormir ninguém nos vê (falo para os solteiros, convictos ou pela-força-das-circunstâncias, e para os casados-que-acham-que-já-não-têm-de-fazer-esforços-porque-a-parelha-também-os-não-faz, reduzindo a dita parelha a "ninguém").
Eu faço o elogio do pijama. De algodão, com bonecos, de flanela, de xadrez, polar, monocolor ou policromático, de seda na versão negligé, de alças, manga comprida ou manga 3/4, o pijama reflecte as tendências e ajusta-se-lhes.
Gosto de pijamas. Nao há nada que me lembre que reúna melhor conceitos tao díspares como paz, fim de semana, descanso, filmes, chocolate, bicharada, quente.

fevereiro 22, 2011

Há tantos anos a jogar ao rapa, chegou a vez do dominó

O que fará mover aquele mar de gente que perturba a tão aparente quanto frágil quietude dos países do norte de África? O que leva a que tantos homens e mulheres, avós, pais e filhos, desçam à rua com gritos e pedras de revolta que tanto afligem a nossa pantanosa pacatez?

E afligem porquê? Porque não temos o expediente fácil e costumeiro da cegueira do conflito religioso ou, até, da alienada paixão clubística, na origem de tão imensas multidões? Porque a evidência de se estar disposto a dar o corpo às balas pela causa da justiça social está tão afastada assim das penosas consciências europeias ou «ocidentais»?

A verdade é que, talvez ainda algo afastados das realidades quotidianas que originam tais revoltas, nós, portugueses, aqui bem perto, temos vindo a ser conduzidos para esse redil de iniquidades sociais, através de diversos processos de anestesia, quase sem um estremecimento, quase sem um pestanejar.

Mas as realidades estão aí. Intempestiva e inesperadamente, uma perda de emprego. De súbito, o dinheiro que não chega para uma prestação. De repente, o frigorífico vazio, perante um olhar já reticente de fome. O cortar numa ida ao teatro. O desespero do enésimo emprego precário. A angústia de falta de apoios sociais. A vergonha de pedir.

Depois, como sempre, a malta vai-se ajeitando. Ou tentando… Descobrindo ou inventando alternativas, onde a legalidade, entendida como promotora da equidade e alicerce nacional, pode ser o último factor a considerar porque o ser solidário se vai esvaziando de sentido.

A amargura desesperada da solidão, quando já não existem mais cordas para esticar… A tensão de quem já nada tem a perder.

E, muito pelo contrário, o voltar a descobrir o quanto a união faz a força. O sair para a rua, num outro Abril, de braço dado com um irmão no infortúnio ou na injustiça, um breve e fraco regato, que engrossa em furiosa corrente sem dar tempo a resguardos de última hora. E, por fim, um mar de gente que nada nem ninguém segura.

«Do rio que tudo arrasta se diz violento. Ninguém diz violentas as margens que o oprimem», como já nos referenciava Brecht.

Aquele que, amanhã, se mostrar surpreso perante o desvario da populaça ou é imbecil… ou é imbecil. E África, nos tempos que vão correndo, está à distância de coisa nenhuma.

E, enquanto os bonzos continuam a jogar ao rapa, há-de chegar o momento em que a tal corrente imparável da queda das peças do dominó, que ninguém soube apurar quando se iniciou, os atinja, com apelo e com agravo, e aí – talvez para bem da imensa maioria – será tarde demais para apurarem que no jogo que jogavam, para além do rapa e do tira, também tinham, por opções, o põe e o deixa.

«Morte e ressurreição de Keynes»

Uma aula enviada pelo Zé Luís com a seguinte anotação:
"Meus caros amigos, não dêem por mal empregue esta excelente aula de macro-economia sobre a Teoria de Keynes. Vai-nos ajudar a compreender melhor «o buraco» onde fomos metidos! E agora, para sair daqui?"

fevereiro 21, 2011

Não me chocam, à partida, os direitos adquiridos...




... mesmo assumindo que são sempre discutíveis, em maior ou menor grau.
Mas revoltam-me os luxos, mordomias, alcavalas,... adquiridos!

fevereiro 18, 2011

«Planeta Humano» - documentário da BBC

3 minutos e 33 segundos de espanto com a raça humana!
Recomendo que vejam este video em ecrã inteiro, neste link.

fevereiro 17, 2011

«O majestoso saco de plástico» - um absurdocumentário

Documentário com narração de Jeremy Irons sobre a situação actual da poluição das embalagens de plástico (no caso, da Califórnia).

fevereiro 15, 2011

Book - a revolução tecnológica!

"Agora que apareceu um novo gadget da Apple (o iPad) e que se promovem os livros electrónicos como o Kindle da Amazon, surge-nos este suposto analista, que faria inveja a Bill Gates da Microsoft ou Steve Jobs da Apple, a falar-nos durante três minutos das virtudes e potencialidades de um novo produto tecnológico revolucionário.
Usando a palavra inglesa «book» (livro) o autor faz uma paródia, quer aos analistas de novos produtos que se apresentam com um ar muito erudito, mesmo quando estão a falar da coisa mais vulgar do mundo ou, até, de produtos já com algum tempo, quer a muitos destes gadgets que mais não são do que um apelo ao consumismo, realçando de forma divertida os benefícios do consumo do «Book»!
Este vídeo está incluído na campanha leerestanamoda (ler está na moda) promovida pelos nosso vizinhos espanhóis no site www.leerestanamoda.com
A legendagem foi publicada após devida autorização destes."
[anotações de nuno1957 do video no YouTube]

fevereiro 14, 2011

A nova escravatura laboral e a velha docilidade das massas

Há algo de eminentemente suicidário neste modo airado em que se deixaram – e vamos deixando todos - cair as relações laborais. E, apesar de ter eu algumas responsabilidades sindicais ou até por isso mesmo, não deixo de manifestar o meu profundo asco pela hipocrisia que medra nesta descomposta perversão social.

De facto, de há uma boa quinzena de anos a esta parte que venho ouvindo, nos mais diversificados fóruns sobre a matéria, as teorias mais acabrunhantes quanto à fatalidade das alterações no relacionamento laboral «tradicional» – o que tem por trás, sem que ninguém o denuncie, a vontade incontrolada de subverter a legislação em vigor, com a decorrente subversão do estado de direito – sem que alguma vez eu tenha liminarmente percebido quais as momentosas razões que justificam ou explicam esta «fatalidade».

Paira invariavelmente sobre os oradores apologistas de tamanha e incontornável desgraça – sempre indivíduos escolhidos pelo Olimpo dos deuses liberais - um saber que lhes chegou por iluminação divina, porventura muito mais do que pela análise objectiva das realidades sociais que os rodeiam, mas à qual, por força de bom aconchego proporcionado pelos seus mandantes, lhes são estranhas.

Banham-se, então, patronato feudalizante e seus profetas, no mesmo pântano dos ruminantes estatais, primeiros fautores desta desregulamentação e péssimos exemplos de promoção de justiça social, por obrigarem a praticar, nos organismos a que se alcandoraram, as mais ilegítimas relações de trabalho, certos da sua impunidade. Já porque o seu próprio desempenho é temporário e a memória do povo é curta, já porque a mole imensa do aparelho estatal tudo vai amalgamando num cimento de indiferença, já porque a justiça, em Portugal, ainda segue preceitos mais ruminantes do que eles próprios. Nada será, pois, detectado, julgado e punido em tempo útil e assim crescem e medram os seus seguidores.

Ora, se o Estado o faz, logo depois os inevitáveis oportunistas, seguros desta impunidade, lhes seguem o exemplo, tanto mais que as «lógicas» colocadas no terreno, tendo início no Estado, prosseguem as mais das vezes na actividade dita privada através das mesmíssimas mãos sujas, ainda que de punhos alvos.

E é assim que, invocando as teorias mais aberrantes e estapafúrdias, sem qualquer base com mínimos de objectividade sociológica, filosófica ou, até, política, para além do «venha a nós o vosso reino» que todos conhecemos, estes prostitutos do capital vêm destruindo todo um edifício de conquistas sociais, essas sim sustentadas pelo suor de cada dia, quando não pelas lágrimas e pelo sangue de quantos chegaram a dar a vida pelo mais justo equilíbrio do que se considera ser a sociedade humana.

Discurso radicalóide, este, e em termos passadistas? Venham lá dizer-me em que passagem…

O certo é que, por força deste oportunismo desenfreado, nove em cada dez empregos actualmente criados em Portugal, são-no na base da precariedade, do recurso ao «recibo verde», e ao arrepio de quanta legislação laboral existe em vigor. 

Não menos certo é que esta «lógica», que tem por grande objectivo transformar o mundo do trabalho numa enorme «chinesice» em prol da maior criação de riqueza concentrada cada vez em menor número de mãos, arrasa irremediavelmente e torna insustentável toda a segurança social – um dos pilares em que é suposta estar apoiada a civilização dita ocidental.
E entenda-se tal «chinesice» na perspectiva de ser criada uma força de trabalho disponível e amorfa, embrutecida pela urgência de sobreviver em cada dia, aculturada e incivilizada, ainda que tenha acesso ilimitado aos «saberes» empacotados e formatados que as pseudo-elites  lhes disponibilizam.

Como efeitos colaterais, a míngua crescente dos descontos verificados para a Segurança Social, por parte de quem pouco ou nada ganha, lado a lado com as reformas milionárias que, entre si, distribuem aqueles novos bonzos que nos desgovernam e que também pouco ou nada descontam, graças a expedientes consabidos de pagamentos em géneros, por força da «dignidade da função», tornam-se o germe e estão a criar condições para que – a manter-se esta «lógica neoliberal» - venhamos a assistir, mais cedo do que todos esperam, ao desenvolvimento de enormes convulsões sociais.

É certo que, nesta pasmaceira em que mal vivemos, mas somos useiros e vezeiros em vivê-la, parece que o bom do portuga tudo aguenta. Mas atente-se no exemplo que nos chega do Egipto.

O que me aflige, socialmente falando, é sabermos que a pior revolta é a do carneiro…

Atingimos, assim, a inevitável questão, para não suscitar acusações de pessimismo exacerbado: perante o que fica dito, que fazer?

Pois a mim parece-me que uma das respostas consiste em, muito simplesmente, fazer cumprir a legislação existente, já que contra ventos e marés adversas, sempre estamos num estado de direito.

E eis como a Inspecção Geral do Trabalho, logo seguida pelos Tribunais, poderão (poderiam?) vir a assumir um transcendente e revolucionário papel no destino da nação que somos. 

Quanto ao mais, indústria, a agricultura, as pescas - lembram-se? -, todo o chamado tecido produtivo nacional, que foram erradicados do mapa nacional no concelebrado período do «Cavaquistão» e das vacas gordas europeias, e que mereceram o aplauso idiota de tanta «picareta falante», como irão renascer das cinzas, para que a nossa dignidade e independência nacionais regressem?   

fevereiro 11, 2011

«The Calf-Path» / «O trilho do Bezerro» - Sam Walter Foss

O meu irmão, Lourenço Moura, enviou-me este "poema de Sam Walther Foss (1858-1911), escrito há cerca de um século. É uma parábola à ausência de sentido crítico / inovação. Já o conhecia, mas ontem à noite deu-me na cabeça em tentar arranjar uma tradução, e acabei agora uns retoques «finais». Espero que gostes."
Gosto tanto que faço questão de partilhar convosco:
One day, through the primeval wood,
A calf walked home, as good calves should;
But made a trail all bent askew,
A crooked trail, as all calves do.

Since then three hundred years have fled,
And, I infer, the calf is dead.
But still he left behind his trail,
And thereby hangs my moral tale.

The trail was taken up next day
By a lone dog that passed that way;
And then a wise bellwether sheep
Pursued the trail o'er vale and steep,

And drew the flock behind him, too,
As good bellwethers always do.
And from that day, o'er hill and glade,
Through those old woods a path was made,

And many men wound in and out,
And dodged and turned and bent about,
And uttered words of righteous wrath
Because 'twas such a crooked path;

But still they followed - do not laugh -
The first migrations of that calf,
And through this winding wood-way stalked
Because he wobbled when he walked.

This forest path became a lane,
That bent, and turned, and turned again.
This crooked lane became a road,
Where many a poor horse with his load

Toiled on beneath the burning sun,
And traveled some three miles in one.
And thus a century and a half
They trod the footsteps of that calf.

The years passed on in swiftness fleet.
The road became a village street,
And this, before men were aware,
A city's crowded thoroughfare,

And soon the central street was this
Of a renowned metropolis;
And men two centuries and a half
Trod in the footsteps of that calf.

Each day a hundred thousand rout
Followed that zigzag calf about,
And o'er his crooked journey went
The traffic of a continent.

A hundred thousand men were led
By one calf near three centuries dead.
They follow still his crooked way,
And lose one hundred years a day,

For thus such reverence is lent
To well-established precedent.
A moral lesson this might teach
Were I ordained and called to preach;

For men are prone to go it blind
Along the calf-paths of the mind,
And work away from sun to sun
To do what other men have done.

They follow in the beaten track,
And out and in, and forth and back,
And still their devious course pursue,
To keep the path that others do.

They keep the path a sacred groove,
Along which all their lives they move;
But how the wise old wood-gods laugh,
Who saw the first primeval calf!

Ah, many things this tale might teach -
But I am not ordained to preach.
Um dia, através do bosque cerrado
Um bezerro ao curral voltava apressado;
Seguindo ao acaso por instinto,
Criando pelo mato um labirinto

Desde então, 300 anos decorridos,
Presumo que o bezerro tenha morrido.
Mas deixou o seu trilho afinal,
E com ele a base do meu conto moral.

O trilho no dia seguinte foi usado
Por um cão perdido e escanzelado;
Então uma mansa ovelha em viagem
Por lá seguiu também para a pastagem

Trouxe o rebanho atrás em procissão,
Como grandes líderes fazem à multidão.
A partir de então nesses montes de estevas
No velho bosque surgiu uma vereda,

E muitos homens já a calcorreavam
Mas com muito esforço quando passavam
E praguejavam em voz furiosa
Por a vereda ser tão tortuosa;

Mas ainda assim lá seguiam - que sarilho!
Daquele bezerro o primeiro trilho
Que no bosque fez quando lá passava
Porque ao caminhar ziguezagueava

E esta vereda tornou-se um caminho
Com curva após curva em desalinho
O torto caminho tornou-se estrada,
Em que pobres cavalos levavam carga

Sob o sol escaldante andavam sem jeito,
Três léguas para fazer uma a direito
E assim por um século e meio, se não erro
Trilharam os passos daquele bezerro.

Os anos passaram como no vento a areia.
A estrada tornou-se em rua de aldeia,
E sem que alguém notasse a novidade,
Foi rua agitada de uma cidade

E logo se tornou a rua central
De uma bem conhecida capital
E as gentes dois séculos e meio passando
O trilho de um bezerro seguiam pisando.

Cada dia cem mil almas - que Deus as guarde!
Vão como o bezerro em ziguezague
E no torto percurso segue essa gente
O tráfego de quase um continente.

Cem mil homens por percurso torto
De um bezerro, há séculos morto
Seguem ainda a tortuosa via,
E perdem quase cem anos por dia,

Pois toda a reverência é prestada
Quando a tradição está bem instalada.
Uma lição este conto vem ensinar
Se me permitem que vo-lo possa pregar;

Os homens por vezes seguem cegos em frente
por caminhos do bezerro da nossa mente,
E a trabalhar de sol a sol todos os dias
Para fazer o mesmo que outros faziam.

Seguem o percurso que sempre se fez,
Por fora por dentro, para a frente e para trás,
E o seu curso tão tortuoso prosseguem,
Para manter o que os outros repetem.

Mantêm o caminho como via sagrada,
Ao longo do qual toda a vida é formada;
Mas ouçam os deuses do bosque gozar,
Pois viram o primeiro bezerro passar!

Ah, muito este conto poderia ensinar -
Mas ninguém mo pediu para pregar.

fevereiro 09, 2011

Petição «não à mudança de hora» - ponto de situação

Malta,

Leram as notícias? A Rússia acaba este ano com a mudança de hora. Excertos da notícia no «DN»:
"O Presidente russo, Dmitri Medvedev, anunciou hoje que ordenou o fim da mudança da hora no país por razões de saúde pública.
(...) No entender do chefe do Estado russo trata-se de proteger os russos do stress e de várias doenças.
(...) Tal decisão torna a Rússia uma excepção na Europa.
(...) A medida é com frequência motivo de debate."

Isto é animador. Mas, pelo contrário, a ausência de divulgação da petição para acabar com a mudança de hora em Portugal faz com que só 110 pessoas até agora a tenham subscrito:

Consulta e assina a petição

Agradeço às pessoas que já subscreveram e deixo aqui os comentários que alguns dos subscritores fizeram questão de registar na petição:
"A hora de verão é a melhor para Portugal. E melhor, melhor mesmo é não mexer na hora."
"A mudança da hora não produz efeito positivo algum, nem sequer o tal «económico»."
"Acho que a hora de verão é a mais indicada e é tudo uma questão de hábito."
"Agradeço e há muito que reparo nas maiores inconveniências do que benefícios com a desarrumação que faz no nosso cérebro cada vez que muda o horário!"
"Devemos respeitar a hora solar. Os organismos, quer animais, quer vegetais, estão «desenhados» em função dela."
"É muito importante essa permanência constante da hora e, mais importante ainda, que seja praticada em todos os países do mundo. Para quê mudar os relógios e a hora biológica dos humanos?! Que interesses se escondem por detrás dessa prática aberrante? Economia e benefícios de quem? Aprovação de quem? Esta campanha precisa circular em todo o país e em todo o mundo. Se fosse apoiada pela mídia em geral não haveria dúvidas de sua aprovação. Mas para isso será necessário o apoio explícito de figuras famosas do ãmbito nacional e internacional, a fim de acordar os menos atentos a esta justa e salutar petição."
"Em tempo de poupança, esta medida implicaria uma redução de custos energéticos domésticos assinalável e muito provavelmente empresariais e seguramente públicos."
"Esta hora de inverno dá cabo da minha cabeça por alteração do sono." "
Esta petição não fala de algo extremamente importante para a não mudança da hora: redução drástica de vontade e força anímica para continuar a trabalhar a partir das 17h00, quando começa a escurecer, em horário de inverno... Só isso já devia valer para não mexerem na hora de Verão!"
"Estou completamente de acordo."
"Há que aproveitar todo o Sol disponível."
"Não compreendo os verdadeiros motivos da mudança de hora... «terá a ver com os jogos da bolsa»... e está um país como o nosso a fazer a vontade a quem?..."
"Não preciso de fazer mais comentário algum, concordo plenamente com os argumentos expostos."
"O Sol quando nasce lá tem as suas razões. Porque havemos nós de o contrariar, contrariando-nos?"
"Por vezes mudar é preciso, neste caso não. A natureza fá-lo por si, não necessitamos deste artificialismo."
"Realmente, graças à mentalidade de alguns políticos que não têm mais nada para fazer, obrigam-nos a suportar a alteração de hora bianualmente, com efeitos nefastos sobre nós e aos nossos filhos durante a semana seguinte."
"Subscrevo esta petição, por entender que a mudança da hora não é assim tão benéfica como se quer fazer crer."
"Vamos acabar com a mudança de hora de uma vez por todas pois não faz sentido nenhum no nosso país."
"Vamos acabar de uma vez com esta mudança que não tem sentido nenhum."

fevereiro 07, 2011

a mão estendida de alguns pobres ricos...

Uma das coisas que caracteriza a idealizada «sociedade de informação» em que supostamente vivemos é, exactamente, a proliferação de fontes de desinformação, que criam ao vulgar cidadão uma dispersão aleatória de abordagens sobre cada assunto em análise, geradora, afinal, de uma opacidade para a interpretação, que conduz a que nunca saibamos onde se encontra a verdade… ou, sequer, uma réstia dessa verdade, que nos ilumine o viver.

Vem este arrazoado a propósito do drama terrífico das escolas privadas e/ou cooperativas ou associativas – desde logo é necessário ser um iniciado para se perceber do que se trata – que, à míngua de subsídios estatais, mesmo ao arrepio de anteriores situações contratualizadas, diga-se, poderão ver-se constrangidas a despedir docentes e pessoal auxiliar (se é que, destes, ainda os têm), prescindir de equipamentos e de oferta ou, até, fechar as portas, para descabelamento desesperado dos «ricos» (ou talvez não…) progenitores das pobres crianças… e tal… e tal…

Primeira questão: haja algum cuidado, pois nem todos os progenitores em questão serão, efectivamente, tão ricos assim!

Depois, pareceria ao comum cidadão que o ensino privado teria razão de existir em duas situações típicas:

- Livre iniciativa empresarial privada, absolutamente autónoma – embora com alguma supervisão estatal que assegurasse a qualidade pedagógica e logística – à qual recorreriam os pais que tivessem dinheiro para pagar os correspondentes encargos;

- Livre iniciativa empresarial privada, com eventuais subsídios estatais em todos aqueles lugares onde o ensino público não existisse ou não tivesse capacidade de resposta, e como forma expedita de assegurar igualdade de oportunidades no acesso ao ensino, enquanto preceito constitucional.

Ora, o que parece ser mais comum neste maravilhoso e fantástico País é a existência de escolas privadas, verdadeiramente encavalitadas em escolas públicas e em concorrência com estas… em termos absolutamente não comparáveis, quer de um lado, quer do outro, mas auferindo das prebendas estatais como se a sua existência se localizasse em inóspita serrania.

E, aqui, o cidadão deixa de perceber o que está a acontecer. 

Atingem-se cúmulos do despautério quando sabemos que o Estado chega a pagar a escolas privadas transporte de crianças, a distâncias de dezenas de quilómetros, crianças que vivem com uma escola pública ao lado das respectivas casas.

Ora, bem. Aqui e se bem entendo, trata-se da opção dos pais pela escola privada. Essa opção tem de ser paga por quem a assume… e ponto final!

Mas como, em Portugal, qualquer lei ou regimento, rapidamente se transforma no regabofe habitual do salve-se quem puder, regado com a esperteza saloia, assim chamada, de um deus para mim e um diabo para os outros, logo tudo se aconchega à marmita do estado…

E lá estamos como estamos. Tudo grita, tudo barafusta, tudo tem razão. E eu fico sem saber se é por excesso de oferta ou de procura.

Sei que o Ministério da Educação tem vindo a encerrar milhares e milhares de escolas públicas, com a argumentação mais desvairada, sempre às costas do défice. Ora, se isto é uma janela de oportunidades, como agora se diz, para a iniciativa privada, há que ver quão envenenado pode estar esse presente.

A mim resta-me uma consolação fatídica, nesta lógica da treta dos governantes da treta que vamos elegendo: apesar de eu já nem ter filhos em idade escolar e de aquele que tive sempre ter frequentado a escola pública por opção de qualidade da minha parte, seja qual for o resultado final desta saga, vou ter de pagar mais impostos.

fevereiro 06, 2011

"A precariedade é este mundo parvo onde para ser escravo é preciso estudar"

O deputado José Soeiro, do Bloco de Esquerda, intervém na Assembleia da República usando a canção da Deolinda para o combate à precariedade, referindo-se aos estágios não-remunerados, às empresas de trabalho temporário e às propostas do Bloco nesta matéria.

fevereiro 05, 2011

As privatizações ou como ter mais laranjas se der a laranjeira que é minha ao vizinho

Nos tempos de crise económica é da praxe o desfilar das receitas, que de tanto serem veiculadas e propagandeadas, passam a ser aceites como incontornáveis para a solução de aflição em que as contas se encontram. A estratégia inscreve-se na já conhecida e metafórica estorinha da rã que acaba por ferver ao aconchegar-se na água ao lume que de morna fica cada vez mais quente. Neste contexto, as famigeradas privatizações são a linha da frente que os gurus-emprestadores-de-dinheiro apresentam entre as medidas indispensáveis e sem as quais os países não conseguem sair das crises.
É sempre saudável, sob o ponto de vista de observador, reduzir o tamanho dos fenómenos ao nivel do seu entendimento imediato. Mesmo um grande engenheiro apenas consegue ver a globalidade dum mega-projecto se o reduzir a uma maquete sobre a secretária.
Peguemos então numa crise e reduzamos um país ao tamanho duma casa com um quintal que produz laranjas das quais nos alimentamos. As que nos sobram trocamos por outras coisas e o mundo é o melhor dos mundos salvo se um dia quisermos mais coisas e as laranjas não chegarem. Aí podemos esperar e guardar laranjas para uma próxima vez ou negociar um adiantamento e levar as coisas de imediato. Esta facilidade, o crédito, sem a qual nenhuma economia moderna funcionaria, é um mecanismo poderoso, mas tremendamente perverso.
É clássica a estória dos colonizadores estabelecidos nos entrepostos comerciais em África. Mal viam os nativos chegar com os grandes sacos de mancarra (amendoim) que vinham vender, os quais tinham estado a encher todo o dia, punham logo umas garrafas de aguardente em cima do balcão, uns sacos de arroz e peixe seco, de feijão e uma barra de sabão, e mais umas de aguardente ao lado duns maços de tabaco e fósforos.
Ainda o desgraçado não tinha posto o primeiro saco em cima da balança, já o livro das contas estava sobre o balcão e o avio apontado. No fim das operações de pesagem o diálogo era um disco já gravado:

“ X em amendoim e como levas agora isto que é Y, e tinhas ficado a dever da outra vez Z, ficas devendo T...., mas repara que já deves mais agora do que há uma semana”
“Mas ...eu, eu preciso de algum dinheiro....”
Precisas de dinheiro? Então não levas aí tudo o que te faz falta? Queres o dinheiro para quê? Mas pronto, vejo pela tua cara que queres fazer um extra. Toma lá cem escudos, mas não te esqueças. Fica aqui apontado e repito: não te esqueças de que já estás a dever mais. Daqui a uma semana quero mais mancarra. Vá....


Esta simplicidade ingénua da qual o comerciante se aproveita, faz-nos sorrir. Nós que não cairíamos nessas esparrelas tontas. Em primeiro lugar, o nativo não tinha pedido nada, nem era obrigado a aceitar coisa alguma previamente colocada em cima do balcão. Apenas iria pesar os amendoins e receber o valor em dinheiro. Com esse dinheiro na sua posse iria geri-lo da forma que entendesse...
No entanto esta ingenuidade alheia e que nos faz sorrir condescendentemente, é exactamente a mesma que demonstramos durante estes últimos anos em que as nossas casas foram invadidas de cheques pré aprovados emitidos pelos bancos, de cartões de crédito não solicitados, de prémios de adesão fantásticos para viagens viaje-agora-pague-depois, de colecções de toda a sorte, de pratas assinadas e electrodomésticos-a-preço-da-chuva-a-duas-mancarras-por-dia. Não que nos fizessem falta, ou melhor, tanta falta. Na minha área vi tanto bom equipamento deitado fora e trocado por um novo de melhor aspecto, mas de desempenho e durabilidades questionáveis e que fizeram jus à minha desconfiança, estando já-há-que-tempos nos ecopontos e substituidos por outros igualzinhos em história de vida previsível.
Mas regressemos ao nosso cantinho, a nossa casinha que o nosso vizinho assediou de prospectos publicitários.
Agora temo-la cheia de cangalhos.
Já nem queríamos tanta coisa, mas como o vizinho dizia que não havia problema que logo pagaríamos com laranjas, as coisas lá foram chegando.
Há umas semanas contudo, a situação mudou.
Ele quer mais laranjas, precisa mesmo de mais, exige mais.
Diz que é coisa de juros. Do tempo que tem que esperar e que lhe traz prejuízos...
No entanto, estamos a dar-lhe muitas mais laranjas, tantas que já não provamos o gosto delas há que tempos.
Hoje as coisas pioraram, ele quer ainda mais sob pena de cortar o fornecimento das coisas que nos são essenciais.
- Não deveriam ter comprado tanto, senhores...-, diz ele agora, de ar compreensivo, cinicamente paternalista enquanto nós já não sabemos o que fazer à vidinha.
Finalmente, e após uns dias complicados, apresenta uma solução:
- Entrega-me essas laranjeiras e fica a dívida saldada, e ainda lhe dou vinte e cinco quilos por semana.
E nós, o que fazemos? Entregamos as laranjeiras em troca de vinte e cinco quilos de laranjas por semana? E então as outras coisas de que precisamos? Como vamos ter receitas para trocar por pão e água?
- Não há problema, vizinho: por vinte e quatro quilos de laranjas, tem o pão e a água de que precisa para comer e tratar das minhas laranjeiras, e ainda lhe deixo um quilinho para os seus gastos....

charlie

fevereiro 02, 2011

Filhos de Cronos

Hoje, alguém me disse que não tinha tempo.
Assim, tão cruamente quanto isto.
Que o trabalho lhe ocupa o tempo todo.
É uma expressão vulgar, bem sei, nos dias que correm, mas tive pena. Dele. Por ele. A minha geração aprendeu a afirmar-se não (só) pela qualidade mas (sobretudo) pela quantidade de tempo dispendido na sua profissão. Não ter tempo é sinal de empenho, de rigor. Ter tempo é sinal de preguiça.
Admiramos os que passam o dia a sprintar sem que, ainda assim, consigam corresponder ao muito que o mundo espera deles. São filhos de Cronos, o pai que devora a própria descendência. Os minutos passam, transformam-se em horas, dias, anos. O tempo devora-os.
E desprezamos os que estão sempre disponíveis. Não importa se trabalharam tanto tempo como os outros, se se organizaram de maneira diferente justamente para estarem lá para quem lhes é caro. Não se queixam, não correm, não bufam, e passamo-lhes o atestado: se tens tempo, não te esforças.
Quem me conhece sabe que eu tenho tempo. Tê-lo-ei sempre: o tempo é meu, porquanto não é meu dono. Reneguei Cronos e, como Régio, sou filha de Deus e do Diabo. Por isso, estarei sempre disponível para os que sabem que o meu tempo, que é precioso, também é deles.