Olhai, senhores, como é diferente a bruteza em Portugal. E, também, como tanta bacorada proferida sobre o recente tema dos Deolinda, me deixa uma indizível sensação de vergonha, enquanto representante dos pais que têm toda a responsabilidade em quantas gerações rasca, ou à rasca ou nem-nem vêm produzindo nos últimos quatro decénios…
Desde fazer comparações espúrias com o José Afonso – o que é tão estúpido, anacrónico e insultuoso para o próprio como para os Deolinda, pois, como devia ser sabido, cada roca com seu fuso e cada tempo com seu uso… – até aproveitar para menosprezar ou mesmo denegrir a imagem do grupo musical, numa prática muito própria dos portugas retardados ou diminuídos mentais por razões não fisiológicas, mas bem instalados nas tetas da porca estatal, tudo tem valido para esses mais desvairados gurus da nossa praça lavrarem as sentenças mais disparatadas a propósito… de tal despropósito.
Ouvidos, lidos ou vistos, curiosamente nenhum ou poucos, muito poucos tiveram o discernimento ou o golpe de asa de apurar, tão-somente, que o único paralelismo legítimo a considerar nestas considerações é a capacidade mobilizadora que uma canção pode ter, de súbito arvorada em bandeira de um qualquer movimento social de descontentamento que não encontra, à mão de semear, outro modo expedito de se manifestar.
Sendo que esse poder mobilizador surge quando os «mercadores» ou «mercadófilos» – entenda-se, os defensores intransigentes dos mercados – cuidavam de que a malta já estava sem capacidade de reacção, através das suas anestesiantes argumentações do fim do mundo, a muito breve trecho.
E tudo porque eles não sabem que o sonho comanda a vida, como ensinava Gedeão a quem o sabia ouvir, e que a palavra cantada é, porventura, a manifestação acordada e consciente mais próxima desse estado de sonho.
Na verdade, se olharmos, por exemplo, para uma canção como E depois do Adeus, de José Nisa (letra) e José Calvário (música), interpretada por Paulo de Carvalho, a qual, nas próprias palavras do autor da letra, foi escolhida pelos militares de Abril exactamente pela sua letra inócua, de tal modo que iludisse suspeitas da censura pidesca e da PIDE censória, e que veio a transformar-se num hino à Liberdade e, muito mais ainda do que isso, à luta pela Liberdade… enfim, tal facto deveria levar-nos a outros discernimentos.
Mas a seita das invejas e das mordomias instaladas, os bonzos do medo, da intriga e da mediocridade, tremem tanto quando alguma manifestação de massas lhes foge ao controlo e às suas «científicas previsões», que o único argumento que encontraram nas t(r)ementes cabecinhas apreensivas, foi… desmerecer os Deolinda, como se a banda tivesse tido alguma coisa a ver com aquela manifestação espontânea do público, que tanto os perturbou.
Ou como se a sua qualidade musical – positiva ou negativa, nem vem ao caso – é que estivesse na origem da reacção do público.
É tanto mais curioso este fenómeno quanto é interessante verificar que alguns «esquerdófilos» da nossa praça da alegria de imediato afinaram pelo mesmo diapasão…
Ai – ai os ais deste país… –, estas coisas das movimentações espontâneas do povo causam sempre muita angústia e intranquilidade a quem, nem que seja muito no recôndito do seu travesseiro, sabe e confessa que o fosso cultural entre si próprio e o tal povo, a que um dia pertenceu mas agora nem por isso, se alargou, alargou, alargou… até lhes parecer um mar intransponível onde correm o risco de naufrágio e de afogamento se alguma onda neles embater e os arrastar.
E lá tiveram de encontrar o bode expiatório nos Deolinda, tal como foi o Zeca o bode expiatório preferencial da inversão de valores do regime salazarento em que, de tanto ser o cantor perseguido, ficavam os patetas sem saber se era ele, Zeca, a causa ou o efeito dos males sociais que a (quase) todos afligiam.
Creio bem que, se ainda houvesse a Sagrada Inquisição – que ele há outras… – os bons dos Deolinda estariam a um passo do patíbulo e das chamas… Assim, apenas correm o risco de levarem com algum opinativo enxovalhado.
De resto, todo o incipiente político sabe ou devia saber que nenhuma canção pode mudar o mundo. Mas o que muitos sabidões da política sabem bem é que essa mesma canção pode ajudar muito, em determinado momento do processo histórico, lá isso pode. E isso, eles sabem-no bem demais.
Quando transformam em carne picada laboral gerações sucessivas de jovens, sem eira nem beira em termos de segurança no trabalho, pela violação reles da legislação existente, sob o olhar cúmplice e complacente dos governantes do «centrão», e alimentando assim um cancro social que, inevitavelmente, explodirá nas mãos de todos nós, eles sabem bem demais que se trata de uma questão de tempo e de chicote. Mas um escoa-se e o outro desgasta-se.