O que fará mover aquele mar de gente que perturba a tão aparente quanto frágil quietude dos países do norte de África? O que leva a que tantos homens e mulheres, avós, pais e filhos, desçam à rua com gritos e pedras de revolta que tanto afligem a nossa pantanosa pacatez?
E afligem porquê? Porque não temos o expediente fácil e costumeiro da cegueira do conflito religioso ou, até, da alienada paixão clubística, na origem de tão imensas multidões? Porque a evidência de se estar disposto a dar o corpo às balas pela causa da justiça social está tão afastada assim das penosas consciências europeias ou «ocidentais»?
A verdade é que, talvez ainda algo afastados das realidades quotidianas que originam tais revoltas, nós, portugueses, aqui bem perto, temos vindo a ser conduzidos para esse redil de iniquidades sociais, através de diversos processos de anestesia, quase sem um estremecimento, quase sem um pestanejar.
Mas as realidades estão aí. Intempestiva e inesperadamente, uma perda de emprego. De súbito, o dinheiro que não chega para uma prestação. De repente, o frigorífico vazio, perante um olhar já reticente de fome. O cortar numa ida ao teatro. O desespero do enésimo emprego precário. A angústia de falta de apoios sociais. A vergonha de pedir.
Depois, como sempre, a malta vai-se ajeitando. Ou tentando… Descobrindo ou inventando alternativas, onde a legalidade, entendida como promotora da equidade e alicerce nacional, pode ser o último factor a considerar porque o ser solidário se vai esvaziando de sentido.
A amargura desesperada da solidão, quando já não existem mais cordas para esticar… A tensão de quem já nada tem a perder.
E, muito pelo contrário, o voltar a descobrir o quanto a união faz a força. O sair para a rua, num outro Abril, de braço dado com um irmão no infortúnio ou na injustiça, um breve e fraco regato, que engrossa em furiosa corrente sem dar tempo a resguardos de última hora. E, por fim, um mar de gente que nada nem ninguém segura.
«Do rio que tudo arrasta se diz violento. Ninguém diz violentas as margens que o oprimem», como já nos referenciava Brecht.
Aquele que, amanhã, se mostrar surpreso perante o desvario da populaça ou é imbecil… ou é imbecil. E África, nos tempos que vão correndo, está à distância de coisa nenhuma.
E, enquanto os bonzos continuam a jogar ao rapa, há-de chegar o momento em que a tal corrente imparável da queda das peças do dominó, que ninguém soube apurar quando se iniciou, os atinja, com apelo e com agravo, e aí – talvez para bem da imensa maioria – será tarde demais para apurarem que no jogo que jogavam, para além do rapa e do tira, também tinham, por opções, o põe e o deixa.
E depois não digam que tu não avisaste!
ResponderEliminarA chatice é que ainda há muita gente que está perfeitamente ciente de que estes dois + dois vão resultar, inevitavelmente, em quatro... Mas, por razões várias de comodidade, comodismo e acomodação, vamos todos esperando que o resultado seja 22. Até um dia.
ResponderEliminarNão me tenho nem quero ter na conta de profeta da desgraça mas, por mero exemplo, quando assisto, muito de perto, à sangria de mentes boas e jovens que todos ajudámos (pagando e não só) a formar, a pirarem-se para outras paranças, com a Ministra da Cultura, que até é moçoila simpática, dizendo que isso é bom pela experiência que vão colher, não posso deixar de ficar convencido de que alguém nos anda a pregar uma peta de alto lá com ela.
Quando, depois, vejo que esses jovens vão auferir vencimentos dignos, mesmo quando estão na pesca do bacalhau, na Noruega, ocorre-me logo o Luís de Stau Monteiro quando dizia que para viver a crise o melhor é fazê-lo num país rico...
Cinismos à parte, esses bons técnicos regressam para quê? Por saudade ou masoquismo, só pode.
E nós, exauridos dessa força, seremos talvez poucos e canhestros para combater este bloco central de interesses instalado... Ou não?
Uma prima minha (soa bem, não soa?) é um belo exemplo: foi trabalhar na área dela (investigação em bioquímica) para um instituto no reino Unido.
ResponderEliminarTeve um convite há uma meia dúzia de anos para vir orientar um novo centro de investigação e geri-lo quando arrancasse.
Desde que chegou, desabafava comigo as misérias que tinha que gramar.
Ao fim de 3 anos, mandou-os bugiar e foi para Chicago... orientar um departamento num centro de investigação.
A miséria dos pequenos Soberanos é a de que a fronteira dos seus reinos é tanto mais vasta quanto menos subditos tiverem.
ResponderEliminarEssa vais ter que me explicar, Charlie...
ResponderEliminarJorge Castro (OrCa)
ResponderEliminarPartilho da mesma preocupação, embora queira acreditar que na Europa não se chegará tão longe... tanto no tipo de erros quanto na reacção aos mesmos!! A ver vamos!!;)
Ola malta da roda ;)
ResponderEliminarEm resposta ao nino Paulinho:
Então é algo que está subliminarmente presente nas pinturas, gravuras
e iluminuras que nos chegaram desde a Idade Média.
As leis da perspectiva objectiva não são respeitadas e obedecem à
subjectividade. Assim, as figuras humanas surgem tanto maiores quanto
maior a sua importância no contexto social representado.
Transpondo este dado para os mecanismos de Poder, e dado que um
Soberano pequeno não pode aumentar o seu tamanho nem diminuir os dos
outros, então resta-lhe elimina-los. Chegamos então ao que eu queria dizer. No limíte, um anão déspota, governaria bem num país despovoado.
Num país de minorcas intelectuais, alguém que se agiganta pelo seu
mérito próprio, arrisca-se de fazer de algum modo sombra às correntes do Poder. De tantos casos conhecidos, dos quais tu dás
exemplo, ressalto o de Saramago. O Poder, na altura, sentiu-se estar a mandar num País maior
quando ele foi para Espanha, e nem o Nobel fez os minorcas ver mais longe que o umbigo
As coisas que eu aprendo convosco!
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