dezembro 22, 2014

«A III Guerra Mundial» - Boaventura Sousa Santos

Tudo leva a crer que está em preparação a III Guerra Mundial. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da UE. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia. Num raro momento de consenso entre os dois partidos, o Congresso dos EUA aprovou no passado dia 4 a Resolução 758, que autoriza o Presidente a adotar medidas mais agressivas de sanções e de isolamento da Rússia, a fornecer armas e outras ajudas ao Governo da Ucrânia e a fortalecer a presença militar dos EUA nos países vizinhos da Rússia. A escalada da provocação da Rússia tem vários componentes que, no conjunto, constituem a segunda guerra fria.
Os componentes da provocação ocidental são três: sanções para debilitar a Rússia; instalação de um governo satélite em Kiev; guerra de propaganda. As sanções são conhecidas, sendo a mais insidiosa a redução do preço do petróleo, que afeta de modo decisivo as exportações de petróleo da Rússia, uma das mais importantes fontes de financiamento do país.
Esta redução trará o benefício adicional de criar sérias dificuldades a outros países considerados hostis (Venezuela e Irão). A redução é possível graças ao pacto celebrado entre os EUA e a Arábia Saudita, nos termos do qual os EUA protegem a família real (odiada na região) em troca da manutenção da economia dos petrodólares (transações mundiais de petróleo denominadas em dólares), sem os quais o dólar colapsa enquanto reserva internacional e, com ele, a economia dos EUA, o país com a maior e mais obviamente impagável dívida do mundo.
O segundo componente é o controlo total do Governo da Ucrânia, de modo a transformar este país num estado satélite. O respeitado jornalista Robert Parry (que denunciou o escândalo Irão-contras) informa que a nova ministra das Finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, é uma ex-funcionária do Departamento de Estado, cidadã dos EUA, que obteve cidadania ucraniana dias antes de assumir o cargo. Foi até agora presidente de várias empresas financiadas pelo Governo norte-americano e criadas para atuar na Ucrânia. Agora compreende-se melhor a explosão, em fevereiro, da secretária de Estado norte-americana para os assuntos europeus, Victoria Nulland: "Fuck the EU." O que ela quis dizer foi: "Raios! A Ucrânia é nossa. Pagámos para isso."
O terceiro componente é a guerra de propaganda. Os grandes media e seus jornalistas estão a ser pressionados para difundirem tudo o que legitima a provocação ocidental e ocultarem tudo o que a questione. Os mesmos jornalistas que, depois dos briefings nas embaixadas dos EUA e em Washington, encheram as páginas dos seus jornais com a mentira das armas de destruição massiva de Saddam Hussein, estão agora a enchê-las com a mentira da agressão da Rússia contra a Ucrânia.
Peço aos leitores que imaginem o escândalo mediático que ocorreria se se soubesse que o Presidente da Síria acabara de nomear um ministro iraniano a quem dias antes concedera a nacionalidade síria. Ou que comparem o modo como foram noticiados e analisados os protestos em Kiev em fevereiro e os protestos em Hong Kong das últimas semanas. Ou ainda que avaliem o relevo dado à declaração de Henri Kissinger de que é uma temeridade estar a provocar a Rússia.
Outro grande jornalista, John Pilger, dizia recentemente que, se os jornalistas tivessem resistido à guerra de propaganda, talvez se tivesse evitado a guerra do Iraque em que morreram até ao fim da semana passada 1.455.590 iraquianos e 4801 soldados norte-americanos. Quantos ucranianos morrerão na guerra que está a ser preparada? E quantos não-ucranianos?
Estamos em democracia quando 67% dos norte-americanos são contra a entrega de armas à Ucrânia e 98% dos seus representantes votam a favor? Estamos em democracia na Europa quando uma discrepância semelhante ou maior separa os cidadãos dos seus governos e da Comissão da UE, ou quando o Parlamento Europeu segue nas suas rotinas enquanto a Europa está a ser preparada para ser o próximo teatro de guerra e a Ucrânia a próxima Líbia?

Boaventura Sousa Santos

Artigo da revista «Visão» disponível aqui.

3 comentários:

  1. Grande Mestre, Boaventura!
    Por falar em jornalistas, e acerca da frase "O terceiro componente é a guerra de propaganda", apenas acrescento: "Quando a lenda fica mais interessante do que a realidade, publique-se a lenda (John Ford, cineasta americano).

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  2. Gostava tanto de voltar a ter aulas com ele...

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    1. Nunca tive o privilégio invejável de conhecê-lo pessoalmente mas leio com sofreguidão tudo o que ele escreve e sou um admirador do seu pensamento.
      De facto, está a fazer-se de novo e mais uma vez o encarneiramento da opinião pública.
      É recorrente, um processo diário que faz dos jornalistas sérios, peças raras que gritam inutilmente a sua independência e opinião descartada e livre imersos nas tempestades de miseráveis escribas a soldo dos interesses. Os mesmos interesses que paradoxalmente lixam a vida e interesses daqueles que ávidos de leituras mainstream por um lado, e estupidificados por outro, engolem todas as patranhas e fazem delas a forma de pensamento que no fim qual boomerang, acerta em cheio derrubando os valores que tanto se estimam.
      É uma máquina poderosa, soez e pérfida, criminosa, que não hesita em instilar e provocar, sempre na sombra, sempre na conspiração e na mentira.
      Mas gostaria de sentir qual a opinião dos mesmos do costume se por ventura houvesse um novo momento tipo mísseis em Cuba, que é exactamente o que se está a fazer com Kiev que fica apenas a 898 km de Moskovo, ao alcance de qualquer missilzinho de trazer no porta-bagagem.
      E isto para não falar da esmola enorme sobre a qual ninguém é capaz de mostrar desconfiança; a descida abrupta e contra-ciclica do preço do petróleo?
      Por causa dos xistos betuminosos?
      Mas alguém é capaz de dizer quanto custa espremer um grama de gasolina de uma massa de lama e crude quase só alcatrão e naftas?
      E andamos todos contentes por termos menos dois cêntimos no combustível,?
      É essa a satisfação que nos faz esquecer o silêncio dos inocentes?
      Ai ai, tanta casa dos segredos, tanta pomba assassinada....

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