outubro 20, 2016

pouca terra-pouca terra...

Pudemos, ontem, ler em:

Desmaios nos comboios dão origem a campanha contra o jejum
Se viajar de comboio, tome o pequeno-almoço: é esta a mensagem da Fertagus.
Viajar sem tomar o pequeno-almoço pode afetar a viagem de todos, diz a Fertagus, empresa que detém a concessão do serviço ferroviário entre Lisboa e Setúbal, com passagem na ponte 25 de Abril. Por isso, deu hoje início a uma campanha contra o jejum.
De acordo com a edição de hoje do jornal Público, a empresa avançou com esta campanha na sequência dos desmaios que ocorreram durante viagens, por falta de pequeno-almoço, e que levaram a atrasos na circulação dos comboios. Só no primeiro semestre deste ano, registaram-se 46 episódios de "doença súbita", que prejudicaram a pontualidade de 51 comboios num total de 209 minutos, avança a publicação.

De 2012 a outubro deste ano contabilizaram-se mais de 370 casos, dos quais 82 dentro dos comboios. E a maioria no período entre as 7:00 e as 10:00. Cada caso implica um atraso na ordem dos 20 ou 40 minutos, pelo que, além do comboio em causa, também os seguintes podem ser afetados em termos de pontualidade, o que tem consequências para milhares de passageiros - cada comboio tem capacidade para 1200 pessoas.
"Esta situação não é nova e já tivemos uma campanha mais genérica com várias mensagens, mas agora decidimos fazer esta mais focada na questão dos pequenos-almoços, nas boas práticas", disse à Lusa Raquel Santos, da Fertagus. A campanha passa por entregar folhetos às pessoas, cartazes e na próxima semana na distribuição de maçãs e em princípio iogurtes", explicou.
"As nossas conclusões são baseadas em relatos transmitidos pelas pessoas que, num primeiro momento, são assistidas pelos nossos colaboradores. Algumas revelaram que não tinham tomado pequeno-almoço ou que não comiam há muitas horas", disse.
Além de aconselhar os passageiros a tomarem o pequeno-almoço, a empresa aconselha-os a, em caso de indisposição, a não seguir viagem ou sair na estação seguinte.
A campanha pelo pequeno-almoço arrancou hoje com a colocação de cartazes nas estações e a distribuição de folhetos. Nos próximos dias haverá também a distribuição gratuita de maçãs e, em princípio, iogurtes no período da manhã.
A Fertagus serve atualmente 14 estações numa extensão de linha com cerca de 54 quilómetros. Dez na margem sul, a partir de Setúbal, e quatro na margem norte, até Roma-Areeiro, já em Lisboa.(Fim de citação)

Há alguma coisa de assustador nisto. De anacronismo, também. E poder-se-ia elucubrar profusos tratados antropológicos sobre o assunto. Mas vamos, antes, ao comezinho: 

Devemos presumir que estas «fraquezas súbitas», derivadas daquilo a que vulgarmente se chama fominha e verificando-se de um modo recorrente e não como mero fenómeno esporádico ou contenções alimentares para as passerelles, comprova AOS GRITOS, aquela evidência que não vê quem não quer ver: grande parte da população portuguesa não aufere rendimentos que lhe permitam, ao menos, sequer sobreviver. 

Depois, uma reflexão que me apoquenta: quem é a Fertagus para «aconselhar» comportamentos ao cidadão? Ainda para mais, comportamentos que implicam com a carteira do mesmo cidadão, quando praticam o tarifário que nos apresentam. 

Vejamos, um exemplo: ao efectuar uma investigação sumária (https://www.fertagus.pt/pt/viajar/fertagus# e Via Michelin), apura-se que um bilhete em tarifário simples, entre Lisboa e Setúbal, custa, pela Fertagus, 4,35 € (de estação a estação, fora o resto, claro: estacionamentos, local exacto de destino, etc.). Sabem Vocências quanto custa essa viagem em viatura própria, com portagens incluídas? Pois custa certa de 5,73 €. 

Digam-me lá, quais de Vocências, muito classe média baixa ou remediada que sejam, trocam o conforto óbvio da viatura numa viagem que cerca de 60 Km, pela diferença espantosa de 1,38 € (não contabilizando os restos de que acima se fala)… Isto se viajarem sozinhos, pois simples duas pessoas subvertem toda esta lógica, em favor da viatura própria. 

E quanto ao passe não vamos muito melhor. Passe que serve, fundamentalmente, para o bom povo trabalhador e ordeiro ou estudantada, que precisa de se deslocar entre as duas cidades, não para petiscar choco frito ou sardinha assada, mas para ganhar ou aprender o pão-nosso-de-cada-dia. 22 dias por mês, mais coisa, menos coisa 

A Fertagus, magnânima, cobra-lhe a «ridicularia» de 128,05 €, mas avisa não menos magnanimamente o seu utente, que esse passe, e cito, «permite a realização de um número ilimitado de viagens de comboio entre a estação de origem e a de destino para a qual o Título foi emitido. Válido por 31 dias a partir do carregamento/venda». 

Tudo isto é, sociologicamente, muito interessante. Estou a imaginar alguém do bom povo trabalhador a efectuar «viagens ilimitadas» pelo simples desfrute de viajar no comboio suburbano, para cá e para lá, dias a fio e várias vezes ao dia... 

E sendo «válido por 31 dias a partir do carregamento», para um tal cidadão obreiro isso significará, basicamente, que, de 9 a 11 dias por mês, será, em regra geral, pura perda para ele em favor da Fertagus… A não ser, claro, que seja um adepto fervoroso do choco frito e da sardinha assada e não guarde, para a sua degustação, feriados ou dias santos. 

Assim se poderá presumir que aquilo que a Fertagus embolsa com tal tarifário sobre o bom povo trabalhador há-de dar para comprar umas bolachinhas e, segundo parece, uns iogurtes, não para debelar a fome (o que nem lhe competirá…), mas para se precaver de atrasos, que são sempre uma maçada e um transtorno e dão má imagem à casa. 

Estaremos muito longe de uma parceria entre a Fertagus e a senhora dona Isabel Jonet com o seu «banco alimentar» e a caridadezinha aos molhos? Os Pingos Doces e os Continentes agradecerão, como sempre. Directamente da grande superfície para a estação ferroviária, sempre a engrandecer o País. 

Também se imaginará o futuro apelo da Fertagus ao utente mais remediado: «Já deu a sua bolachinha hoje ao seu companheiro de viagem? Bolachemo-nos, irmãos!»… 

E os bons espíritos irão para o céu que nem passarinhos – e sem carecerem sequer de passe social. 

Pelo caminho, falar das composições atulhadas de gente em horas de ponta, na desregulação permanente do ar condicionado, nas correrias entre comboios e autocarros em serviço da mesma Fertagus, na falta de pessoal de apoio nas estações, tudo não passa de argumentário irrelevante neste contexto. 

E a Fertagus ainda vai invocar as bolachas e os iogurtes como o sacrossanto e tão na moda «serviço social da empresa», abichando assim a complacência bonacheirona das entidades governativas e alguma complacência fiscal, também. 

O que haverá de mais certo é que, nestas exactas circunstâncias, a fominha aumentará e, se as coisas correrem bem, na mesma proporção em que aumentará o tarifário da Fertagus. 

Ele há, afinal, muita matéria, ainda, digna de uma reflexão por parte de quantas geringonças possam abençoar este País, para que o céu que possa existir esteja ao alcance de todos.

A grande questão que todas as fertagus, edpês, redes móveis e imóveis, águas, autarquias, etc., etc., etc. deste País podiam e deviam colocar-se não deveria ser antes: quanto é que podemos baixar os nossas tarifários para permitir alguma dignidade de vida para os nossos utentes, em vez de andarmos a brincar às bolachinhas caridosas, aos museus de espavento e ao foguetório geral em que andamos mergulhados?  

Desculpem lá a extensão da escrevinhação. Vou, entretanto, ali tomar o meu pequeno-almoço, enquanto ficam a pensar no assunto, e já volto...

4 comentários:

  1. Muito bem escrito , mas penso que falta dizer que a fertagus não se incomoda se os utentes tomam ou não o pequeno almoço . O que a fertagus quer é que ninguém desmaie dentro dos comboios !!!

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  2. Se me permitem continuar em senda irónica, eu penso que o problema da Fertagus é haver uns que desmaiam e outros que não. Ainda se todos desmaiassem... nem haveria problema de maior: ninguém dava por isso e seguia a viagem.
    Já não haveria a chatice de chamar o INEM, nem outros atrasos inconvenientes.

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    1. Desmaio... é porque só ocorre entre Junho e Abril?

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