dezembro 24, 2014

Natal, mesmo de improviso...

A todos, 

Acabei de ler uma intensa sugestão de Natal no blog Relógio de Pêndulo, do meu amigo Herético:


que, também intensamente, vos recomendo.

Já leram? E, então, que tal...? 

Natal é, pois, como fica claramente documentado nesta exemplo, aquilo que o nosso olhar apura, o que as nossas mãos constroem, o abraço que perseguimos e obtemos.

Tudo aquilo que, por outro lado, indecentemente, nos cerca e avassala:  ricardos, antónios diversos, josés de manjedouras, coelhos e outras alimárias congéneres, portas fechadas ou cavacos mal passados no fogo primordial, a desarrumação dos dias e a ansiedade das noites, nada disso vai além da muito efémera existência... por muito que perturbe a nossa única e imprescindível existência.

É, pois, também por aquele olhar que, em redor da minha mesa de Natal, eu sei que todos os lugares estão preenchidos. Nalguns casos por memórias. Noutros mais por seres viventes. Mas todos entoando os cânticos necessários e urgentes que sempre ajudam a confortar espíritos.

O Herético, da lisura da sua «alma ateia», ouviu o Gloria in Excelsis Deo. Não posso deixar de estar de alma absolutamente solidária com a dele. 

Quem quiser, faça o favor de se chegar ao grupo. E este Natal terá, certamente, outra graça.

Boas festas!


dezembro 22, 2014

«A III Guerra Mundial» - Boaventura Sousa Santos

Tudo leva a crer que está em preparação a III Guerra Mundial. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da UE. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia. Num raro momento de consenso entre os dois partidos, o Congresso dos EUA aprovou no passado dia 4 a Resolução 758, que autoriza o Presidente a adotar medidas mais agressivas de sanções e de isolamento da Rússia, a fornecer armas e outras ajudas ao Governo da Ucrânia e a fortalecer a presença militar dos EUA nos países vizinhos da Rússia. A escalada da provocação da Rússia tem vários componentes que, no conjunto, constituem a segunda guerra fria.
Os componentes da provocação ocidental são três: sanções para debilitar a Rússia; instalação de um governo satélite em Kiev; guerra de propaganda. As sanções são conhecidas, sendo a mais insidiosa a redução do preço do petróleo, que afeta de modo decisivo as exportações de petróleo da Rússia, uma das mais importantes fontes de financiamento do país.
Esta redução trará o benefício adicional de criar sérias dificuldades a outros países considerados hostis (Venezuela e Irão). A redução é possível graças ao pacto celebrado entre os EUA e a Arábia Saudita, nos termos do qual os EUA protegem a família real (odiada na região) em troca da manutenção da economia dos petrodólares (transações mundiais de petróleo denominadas em dólares), sem os quais o dólar colapsa enquanto reserva internacional e, com ele, a economia dos EUA, o país com a maior e mais obviamente impagável dívida do mundo.
O segundo componente é o controlo total do Governo da Ucrânia, de modo a transformar este país num estado satélite. O respeitado jornalista Robert Parry (que denunciou o escândalo Irão-contras) informa que a nova ministra das Finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, é uma ex-funcionária do Departamento de Estado, cidadã dos EUA, que obteve cidadania ucraniana dias antes de assumir o cargo. Foi até agora presidente de várias empresas financiadas pelo Governo norte-americano e criadas para atuar na Ucrânia. Agora compreende-se melhor a explosão, em fevereiro, da secretária de Estado norte-americana para os assuntos europeus, Victoria Nulland: "Fuck the EU." O que ela quis dizer foi: "Raios! A Ucrânia é nossa. Pagámos para isso."
O terceiro componente é a guerra de propaganda. Os grandes media e seus jornalistas estão a ser pressionados para difundirem tudo o que legitima a provocação ocidental e ocultarem tudo o que a questione. Os mesmos jornalistas que, depois dos briefings nas embaixadas dos EUA e em Washington, encheram as páginas dos seus jornais com a mentira das armas de destruição massiva de Saddam Hussein, estão agora a enchê-las com a mentira da agressão da Rússia contra a Ucrânia.
Peço aos leitores que imaginem o escândalo mediático que ocorreria se se soubesse que o Presidente da Síria acabara de nomear um ministro iraniano a quem dias antes concedera a nacionalidade síria. Ou que comparem o modo como foram noticiados e analisados os protestos em Kiev em fevereiro e os protestos em Hong Kong das últimas semanas. Ou ainda que avaliem o relevo dado à declaração de Henri Kissinger de que é uma temeridade estar a provocar a Rússia.
Outro grande jornalista, John Pilger, dizia recentemente que, se os jornalistas tivessem resistido à guerra de propaganda, talvez se tivesse evitado a guerra do Iraque em que morreram até ao fim da semana passada 1.455.590 iraquianos e 4801 soldados norte-americanos. Quantos ucranianos morrerão na guerra que está a ser preparada? E quantos não-ucranianos?
Estamos em democracia quando 67% dos norte-americanos são contra a entrega de armas à Ucrânia e 98% dos seus representantes votam a favor? Estamos em democracia na Europa quando uma discrepância semelhante ou maior separa os cidadãos dos seus governos e da Comissão da UE, ou quando o Parlamento Europeu segue nas suas rotinas enquanto a Europa está a ser preparada para ser o próximo teatro de guerra e a Ucrânia a próxima Líbia?

Boaventura Sousa Santos

Artigo da revista «Visão» disponível aqui.

dezembro 09, 2014

A posta que não ouves

O sentimento de revolta é um dos que mais mobilizam qualquer pessoa. Seja provocado por motivos plausíveis ou apenas fruto de um raciocínio mal formulado, ou mesmo de um erro de interpretação, desenvolve-se como um tumor maligno enquanto persistir a questão que lhe deu origem.
De entre as revoltas possíveis, a revolta surda é potencialmente a mais nociva. Sobretudo porque tende a emudecer.

O cliché da panela de pressão veste como uma luva qualquer descrição da revolta surda enquanto factor de perturbação. A pessoa acumula essa força interior mal contida, absorve cada sinal, cada confirmação, nem sempre fidedigna, da legitimidade da sua ira. A pessoa ou o país.

É sempre de estranhar quando alguém, ou um povo, sente na pele o efeito de injustiças que se somam às provocadas por um rácio desfavorável entre a sorte e o azar e opta por refilar em surdina.
Aos poucos, a revolta surda vai exprimindo o seu paralelo com um vulcão. São pequenos abalos sísmicos, desabafos soltos aqui e além, aumento da concentração de gases perigosos, a mente a abdicar da racionalidade sem se aperceber. Indicadores a que poucos atribuem relevância e afinal são gritos de alerta para a iminência de uma erupção.

A revolta surda não sabe falar. A sua linguagem é equivalente à de uma granada de mão. Aparentemente inofensiva até alguém lhe puxar pela cavilha e o inferno acontecer, o caos espelhado em estilhaços aleatórios que atingem quem estiver mais a jeito.
Alimenta-se a si própria, sem controlo, uma vez deixada à solta na razão. E é essa a primeira vítima do massacre subsequente à revolta engolida quando a sua natureza é ser cuspida nem que sob a forma de um palavrão.

São poucas as escapatórias encontradas por alguém, ou uma população, na lógica que noutras formas de revolta acaba por prevalecer.
A revolta surda, por se sentir amordaçada, é mais eficaz que as restantes na arte de ensandecer.

dezembro 07, 2014

A política e o domingo

SOARES FAZ 90 ANOS
Devo dizer que nunca coloquei a cruz no seu nome, mas vejo o evidente:
Hoje, as televisões abriram o jornal da uma todas com a mesma notícia. Olhando para as imagens, vemos gente de todos os quadrantes políticos a felicitá-lo. Gente que, como ele, já apresenta provecta idade e as cãs da vida pública dedicada. Serão todos bons? Será o aniversariante bom? Talvez não, mas lá estavam aqueles que nas épocas de menor segurança abandonaram a sua área de conforto e lutaram por ideais, muitas vezes antagónicos, mas, na sua mente, os ideais de um Portugal melhor.
Frequentemente se criticam as senilidades desta geração; porém, se não tivessem sido eles, estes jotinhas que hoje nos governam pugnariam todos por ideias da União Nacional e da Mocidade Portuguesa.
Uma geração que não sabe respeitar a memória dos mais velhos não merece ser recordada no futuro. Há algumas múmias que não se fizeram representar e outros cachopos que assobiam para o lado, mas quando fizerem os seus 90 anos, nada mais terão a seu lado que a enfermeira do Lar e um ou outro familiar dedicado. É esta a lição da vida.


E O SENHOR VOTA EM QUEM?
Desde as minhas aulas de 10º ano, na disciplina de Noções de Administração Pública, que ainda não compreendi nem aceitei o método de eleição de deputados na nossa república.
Achava muito bem que os deputados fossem eleitos por círculos regionais, para defenderem os interesses dos seus eleitores. Grande engano!
Os deputados da Madeira votaram contra o OGE e vão ser penalizados, incluindo o Vice Presidente da Assembleia. Há uns anos, os deputados de Coimbra do PS e outros que eram professores também votaram contra e foram censurados. Sobre os interesses dos eleitores estão os interesses dos partidos, a disciplina de voto.
Ora bolas. Votar para quê? Que sistema injusto é este. Por exemplo, o círculo eleitoral de Portalegre elege um só deputado (ou PS ou PSD), mas o boletim contempla todos os partidos. Para onde vão os votos nesses partidos? Simplesmente não vão!
Defendo abertamente os grupos independentes de cidadãos que não obedeçam a disciplinas partidárias, assim como defendo o fim dos círculos eleitorais. Deveriam ser os partidos a elaborar uma lista com candidatos de todo o país e os votos cairiam por atacado. Todos os votos seriam úteis e poríamos fim ao desperdício (neste caso, de votos), o que tão bem nos ficaria.

dezembro 05, 2014

Hoje apetece-me ser criminosamente demagógico, ainda que no usufruto pleno da minha constitucionalíssima liberdade de expressão

Colhendo, porventura, o exemplo conspícuo e péssimo de alguns que me governaram (e governam) sem que eu lhes tenha para isso dado aval, mas porque assim funciona a nossa abençoada e, acima de tudo, querida Democracia.

E o caso é que vi e ouvi com estes meus apêndices sensoriais que me consta que a terra há-de comer, coadjuvada por uma miríade de pequenos seres subterrâneos – e, ainda assim, mais preclaros que os tais que me governaram e governam, diga-se... – enfim, vi e ouvi, ontem, em programa televisivo dedicado à actividade prolífica a que se dedicam os estudantes do Erasmus por essa Europa afora, coisa de espantar!

Eis a coisa:

Uma jovem portuguesa, em pleno recurso ao Erasmus e em diáspora por terras alemãs, tomou-se de amores por aquele que se lhe revelou o amor da sua vida – a quem apresento as minhas incomensuráveis desculpas por não ter retido a respectiva nacionalidade – e, como acontece muitas vezes nestas conjugações astrais, a coisa precipitou-se na confecção bilateralmente arquitectada de um pimpolho.

Até aqui, nada de especial, para além de este pimpolho integrar cerca de um milhão de outros pimpolhos gerados com o favorecimento do Erasmus – que se revela, assim, um poderoso estimulante erótico e procriador, propiciador do enriquecimento e refrescamento genético da velha Europa, que anda tão necessitada disso como de muitas outras  coisas, aliás.

Ainda nada de espectacular, convenhamos.

Mas eis senão quando a jovem, disfrutando de umas férias em Portugal, nos revela, em entrevista, o seguinte – e parece-me que não deixei escapar migalha:

- Após ter encontrado um emprego na Alemanha, eventualmente lançando mão da formação superior obtida no país dos atrasados que somos nós, e antes do aparecimento do pimpolho, mas depois de ter encontrado o amor da sua vida, segundo percebi, já, portanto, contando o casal com uma estabilidade razoável (o que, em Portugal, é circunstância proscrita e só atingível por treinadores de clubes de futebol de primeira água) com casinha montada, estabilidade emocional e tal, lá chegou a vez do projecto parental, em conformidade com a ordem natural das coisas.

Mãos e outras anatomias lançadas à obra e filho feito, a jovem trabalhadora alemã, ainda que de nacionalidade portuguesa, vê cairem-lhe ao colo e só porque as regras assim mandam lá por essas terras longínquas, 3 (três) anos de licença de parto, com remuneração por inteiro, a que o nobre e avisado estado alemão acrescenta, em termos de abono de família e pela existência do acima referido filhote, 400 – digo bem – , quatrocentos euros por mês.  

Ou seja, se percebi bem, o estado alemão remunera por um filho o que, em Portugal, o nosso estado considera justa remuneração por um mês de trabalho, a quarenta horas por semana.  
  
Se presumirmos – e só mesmo por presunção, claro – que a jovem não estava a enfiar-nos um barrete por bem intencionado que fosse e que, pelo contrário, nos relatava a pura das verdades com quantos dentes tinha na boca, eu quedei em estado semicomatoso do qual ainda não recuperei completamente...

Quantas Europas há por esse mundo fora sem me avisarem? A quantos anos-luz estamos para aqui destas realidades europeias?


E, cuidado, que se algum palerma me vier dizer que a questão reside na produção desigual de riqueza entre os dois países e porque é dado consabido e adquirido que os trabalhadores portugueses são universalmente tidos como dos melhores desse mesmo universo e arredores, eu fico capaz de assassinar o primeiro gestor da coisa privada como da pública, governantes incluídos, que me apareça pela proa!