Antes de mais, uma mais precisa
informação do contexto: entrou no Tribunal Constitucional, subscrito por cerca
de trinta deputados, um pedido de reversão da suspensão do pagamento das subvenções a
ex-políticos com rendimentos superiores a 2000 euros, invocando estarem
em causa os princípios constitucionais da
proporcionalidade e da proteção da confiança e o princípio da igualdade.
A declaração de inconstitucionalidade por
parte do Tribunal Constitucional (por maioria e com cinco votos contra) implica
a sua aplicação retroactiva o que gera um impacto orçamental imediato de cerca
de 10 milhões de euros.
Ora, as decisões do Tribunal Constitucional, por muito que nos pesem,
são para aceitar, porém…
A manta de retalhos
esquizofrénica em que o vulgarmente chamado centrão, instalada no poder há
demasiado longos anos, tem vindo a transformar a sociedade portuguesa, com o
intuito de empochar mais uns milhõeszitos em impostos daqui e dali, sempre
salvaguardando, no entanto, os interesses de quem se equilibra no topo da
pirâmide social, saiu-nos mais uma novidade: o regresso da protecção da vidinha
dos «políticos».
Num país que, por acaso, até
(ainda?) tem uma Constituição viva, documento matricial onde se prevê,
preconiza e perdura o conceito de igualdade de tratamento entre cidadãos, eu
tenho uma dificuldade extrema em entender estas habilidades parcelares e
parciais.
Vejamos: um presumível
«político», antes de o ser mas no bom caminho, inscreve-se, menino e moço, numa
jotinha qualquer. Singra nos meandros oleosos da estrutura e, lá pelos seus
vinte anitos, cego pela gruta de Platão em que se meteu, por opção, alcandora-se
a lugar elegível, por exemplo, na Assembleia. Aí brilha, indefectível e
arrojado defensor de uma qualquer ideologia – preferencialmente, daquelas muito
pragmaticamente mutáveis – e torna-se estrela da companhia.
Com labor, naturalmente, mas
muita manga de alpaca e arte de toureio a pé, cumpre uma legislatura, uma
segunda e, mal chegado a cumprir uma terceira… abicha uma subvenção vitalícia
aos trinta e dois anos!
Note-se que refiro a arte de
toureio tendo como superior referência os Cuadernos
del Aula Taurina (Sevilha, 2002) onde se pode ler que «torear es el arte de burlar y dominar los toros», informação óbvia
que não carece de tradução, mas que se torna mais clara se optarmos por uma interpretação
livre e literal onde o touro, salvo seja, sou eu e mais uma data de cidadãos.
Caramba, aí estão ainda três
quartos da população a tentar encontrar o primeiro emprego que não seja no
famigerado «recibo verde», com a ameaça funesta de que nem deve pensar em poder
aceder a «privilégios sociais» a que os seus pais acederam, e já este pimpolho
pode desfrutar do aconchego da subvenção vitalícia para «políticos», para o que
precisou tão-só de esgrimir uma meia-verónica
atempada na Assembleia, uma chicuelina
a-propósito a um jornalista, uma revolera
oportuna aos seus pares, em congresso.
Atenção, nada de generalizações apressadas
e abstrusas, que ele há muito jovem político efectivamente empenhado na res publica – mas não é disso nem desses
que aqui se trata. Pelo contrário, é dos não-jovens institucionais e
institucionalizados a puxarem, com despudor e energia, a brasa à sua sardinha,
criando, pelo caminho, estas desigualdades escandalosas e intoleráveis, num
país em que se atinge a reforma aos 66 anos de idade e depois de uma carreira
retributiva de quarenta anos.
E parecia até que esta história já teria
terminado, a bem da nação. Mas alguém resolveu dar novo
alento a causas passadas, que a vida anda difícil…
Não há muito tempo, os coligados
Passos e Portas sugaram as pensões e os ordenados em artifícios e malabarismos
de IRS, invocando razões de estado e jurando pelas alminhas que se tratava de
algo a retribuir (ou a repor?) posteriormente.
O Tribunal Constitucional decidiu
ir na conversa do «combate à crise», desde que o saque não durasse muito tempo
(?). Mas ainda dura, essa é que é essa. Porém e pelos vistos, já se revogam,
apenas para alguns, poucos, alguns desses direitos (dinheiros) perdidos pelo
caminho, numa lógica em que alguns portugueses têm mais direito a direitos do
que outros portugueses. E começa-se por aconchegar cidadãos altamente
carenciados como Bagão Félix, Ângelo Correia ou Zita Seabra. Não se entende,
tenham paciência. Nem é aceitável.
Veja-se, a propósito, a decisão
tão recente do mesmo Tribunal Constitucional relativamente aos complementos de
reforma dos trabalhadores de empresas de transportes públicos.
Como não se entende se,
relativamente a tudo que nos tem vindo a ser sonegado, a devolução implica reposição
ou se a reposição implica devolução ou se nada disto é para ser
levado a sério e como em português não nos entendemos, não será melhor irmos
todos aprender mandarim.
O que se me depara piramidal e
abjectamente hipócrita é a invocação, por parte dos subscritores parlamentares
dos princípios constitucionais da
proporcionalidade e da proteção da confiança e o princípio da igualdade.
Então e esses princípios apenas incidem, proporcionalmente, claro, em circuito interno
ou quiçá corporativo? E o resto da nação que se cate?
Para esta engenharia de
prioridades selectivas com a qual o Tribunal Constitucional nos veio titilar as
meninges é que, parafraseando o grande Herman, não havia necessidade… Logo eu,
que até ando tão empolgado com o tempo novo… e cai-me isto, tão velho, no
prato!
Caro Jorge,
ResponderEliminarUma situação repugnante,invertida em relação aos direitos
para aqueles que realmente trabalham e ou aqueles que
trabalham com honestidade e consciência do bem social, coletivo e
humanitário. Muito bem colocado o termo "A manta de retalhos
esquizofrênica" e eu que sou Psicóloga Clínica, entendo
profundamente e concordo com o diagnóstico...rss
No meu País (Brasil) estamos numa situação complicadíssima,
inusitada diante de tantos acontecimentos esdrúxulos, sabendo
que esta corrupção antiga, vem junto com a corrupção também
infelizmente do PT, mas os governos do PT possibilitaram
pela primeira vez a inclusão social e melhorias na qualidade
de vida dos menos favorecidos (a maioria da população) e nesta
crise os mais prejudicados são trabalhadores e a elite fica
intocável e numa posição de portadora da "ética" junto com
a classe política asquerosa. E agora sempre a ameaça de um
golpe pairando, vindo do lamaçal!...
Desculpa o longo comentário, me empolguei com o assunto
e a sua brilhante e irônica narrativa (aprecio muito a sua escrita!...)!
Abraço solidário (nossa indignação em comum)!
Do qual "golpe" falas? As investigações trazendo à tona a corrupção de um dos Partidos que mais pregava a Honestidade?
EliminarEssa é a desculpa da (des)governança do PT, que colocou o País nesse mar de lama: que é golpe. Se as instituições funcionam contra, é golpe.Se a favor...obrigada pelos favores.
E essa tal inclusão social foi uma jogada de mestre para atrair votos. O povo precisa de segurança, boa educação,assistência médica (básica, no mínimo), creches, escolas...e até cadeias! Se tivéssemos isso e outros direitos constitucionais assegurados, não precisariam de Bolsa-Família, Bolsa-Isso,Bolsa-Aquilo. Quem é que não quer o peixe dado na boca? Bem melhor do que ir pescá-los, não?
O Tribunal Constitucional pôs as barbas de molho...
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