janeiro 21, 2016

Diz-me qual é a tua subvenção vitalícia, dir-te-ei quem és

Antes de mais, uma mais precisa informação do contexto: entrou no Tribunal Constitucional, subscrito por cerca de trinta deputados, um pedido de reversão da suspensão do pagamento das subvenções a ex-políticos com rendimentos superiores a 2000 euros, invocando estarem em causa os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proteção da confiança e o princípio da igualdade.

A declaração de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional (por maioria e com cinco votos contra) implica a sua aplicação retroactiva o que gera um impacto orçamental imediato de cerca de 10 milhões de euros.

Ora, as decisões do Tribunal Constitucional, por muito que nos pesem, são para aceitar, porém…

A manta de retalhos esquizofrénica em que o vulgarmente chamado centrão, instalada no poder há demasiado longos anos, tem vindo a transformar a sociedade portuguesa, com o intuito de empochar mais uns milhõeszitos em impostos daqui e dali, sempre salvaguardando, no entanto, os interesses de quem se equilibra no topo da pirâmide social, saiu-nos mais uma novidade: o regresso da protecção da vidinha dos «políticos».

Num país que, por acaso, até (ainda?) tem uma Constituição viva, documento matricial onde se prevê, preconiza e perdura o conceito de igualdade de tratamento entre cidadãos, eu tenho uma dificuldade extrema em entender estas habilidades parcelares e parciais.

Vejamos: um presumível «político», antes de o ser mas no bom caminho, inscreve-se, menino e moço, numa jotinha qualquer. Singra nos meandros oleosos da estrutura e, lá pelos seus vinte anitos, cego pela gruta de Platão em que se meteu, por opção, alcandora-se a lugar elegível, por exemplo, na Assembleia. Aí brilha, indefectível e arrojado defensor de uma qualquer ideologia – preferencialmente, daquelas muito pragmaticamente mutáveis – e torna-se estrela da companhia.

Com labor, naturalmente, mas muita manga de alpaca e arte de toureio a pé, cumpre uma legislatura, uma segunda e, mal chegado a cumprir uma terceira… abicha uma subvenção vitalícia aos trinta e dois anos! 

Note-se que refiro a arte de toureio tendo como superior referência os Cuadernos del Aula Taurina (Sevilha, 2002) onde se pode ler que «torear es el arte de burlar y dominar los toros», informação óbvia que não carece de tradução, mas que se torna mais clara se optarmos por uma interpretação livre e literal onde o touro, salvo seja, sou eu e mais uma data de cidadãos.

Caramba, aí estão ainda três quartos da população a tentar encontrar o primeiro emprego que não seja no famigerado «recibo verde», com a ameaça funesta de que nem deve pensar em poder aceder a «privilégios sociais» a que os seus pais acederam, e já este pimpolho pode desfrutar do aconchego da subvenção vitalícia para «políticos», para o que precisou tão-só de esgrimir uma meia-verónica atempada na Assembleia, uma chicuelina a-propósito a um jornalista, uma revolera oportuna aos seus pares, em congresso.

Atenção, nada de generalizações apressadas e abstrusas, que ele há muito jovem político efectivamente empenhado na res publica – mas não é disso nem desses que aqui se trata. Pelo contrário, é dos não-jovens institucionais e institucionalizados a puxarem, com despudor e energia, a brasa à sua sardinha, criando, pelo caminho, estas desigualdades escandalosas e intoleráveis, num país em que se atinge a reforma aos 66 anos de idade e depois de uma carreira retributiva de quarenta anos.

E parecia até que esta história já teria terminado, a bem da naçãoMas alguém resolveu dar novo alento a causas passadas, que a vida anda difícil…

Não há muito tempo, os coligados Passos e Portas sugaram as pensões e os ordenados em artifícios e malabarismos de IRS, invocando razões de estado e jurando pelas alminhas que se tratava de algo a retribuir (ou a repor?) posteriormente.

O Tribunal Constitucional decidiu ir na conversa do «combate à crise», desde que o saque não durasse muito tempo (?). Mas ainda dura, essa é que é essa. Porém e pelos vistos, já se revogam, apenas para alguns, poucos, alguns desses direitos (dinheiros) perdidos pelo caminho, numa lógica em que alguns portugueses têm mais direito a direitos do que outros portugueses. E começa-se por aconchegar cidadãos altamente carenciados como Bagão Félix, Ângelo Correia ou Zita Seabra. Não se entende, tenham paciência. Nem é aceitável.

Veja-se, a propósito, a decisão tão recente do mesmo Tribunal Constitucional relativamente aos complementos de reforma dos trabalhadores de empresas de transportes públicos.

Como não se entende se, relativamente a tudo que nos tem vindo a ser sonegado, a devolução implica reposição ou se a reposição implica devolução ou se nada disto é para ser levado a sério e como em português não nos entendemos, não será melhor irmos todos aprender mandarim.

O que se me depara piramidal e abjectamente hipócrita é a invocação, por parte dos subscritores parlamentares dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proteção da confiança e o princípio da igualdade. Então e esses princípios apenas incidem, proporcionalmente, claro, em circuito interno ou quiçá corporativo? E o resto da nação que se cate?

Para esta engenharia de prioridades selectivas com a qual o Tribunal Constitucional nos veio titilar as meninges é que, parafraseando o grande Herman, não havia necessidade… Logo eu, que até ando tão empolgado com o tempo novo… e cai-me isto, tão velho, no prato!

3 comentários:

  1. Caro Jorge,
    Uma situação repugnante,invertida em relação aos direitos
    para aqueles que realmente trabalham e ou aqueles que
    trabalham com honestidade e consciência do bem social, coletivo e
    humanitário. Muito bem colocado o termo "A manta de retalhos
    esquizofrênica" e eu que sou Psicóloga Clínica, entendo
    profundamente e concordo com o diagnóstico...rss
    No meu País (Brasil) estamos numa situação complicadíssima,
    inusitada diante de tantos acontecimentos esdrúxulos, sabendo
    que esta corrupção antiga, vem junto com a corrupção também
    infelizmente do PT, mas os governos do PT possibilitaram
    pela primeira vez a inclusão social e melhorias na qualidade
    de vida dos menos favorecidos (a maioria da população) e nesta
    crise os mais prejudicados são trabalhadores e a elite fica
    intocável e numa posição de portadora da "ética" junto com
    a classe política asquerosa. E agora sempre a ameaça de um
    golpe pairando, vindo do lamaçal!...
    Desculpa o longo comentário, me empolguei com o assunto
    e a sua brilhante e irônica narrativa (aprecio muito a sua escrita!...)!
    Abraço solidário (nossa indignação em comum)!

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    1. Do qual "golpe" falas? As investigações trazendo à tona a corrupção de um dos Partidos que mais pregava a Honestidade?
      Essa é a desculpa da (des)governança do PT, que colocou o País nesse mar de lama: que é golpe. Se as instituições funcionam contra, é golpe.Se a favor...obrigada pelos favores.
      E essa tal inclusão social foi uma jogada de mestre para atrair votos. O povo precisa de segurança, boa educação,assistência médica (básica, no mínimo), creches, escolas...e até cadeias! Se tivéssemos isso e outros direitos constitucionais assegurados, não precisariam de Bolsa-Família, Bolsa-Isso,Bolsa-Aquilo. Quem é que não quer o peixe dado na boca? Bem melhor do que ir pescá-los, não?

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  2. O Tribunal Constitucional pôs as barbas de molho...

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