Escreveu-ma a minha queridíssima madrinha Natália, que vive agora em Unhais da Serra. É tão deliciosa que não resisto a transcrevê-la aqui. Perdoe-me, madrinha, mas seria uma pena que não houvesse a oportunidade de outras pessoas conhecerem o seu sentido de humor e as suas experiências de vida que tanto marcam a minha maneira de ser.
"Carta das Unhas da Serra
para o querido Cruijff:
Bem hajas pelo mimo que me ofereceste. Gostei!
Puseste-me a rir e muito apreciei esse teu jeito de contar o sério casado com bom humor e vivências saudosistas. São textos com sabor a coisa sã e genuína. (...)
Não desistas de intervir nesta sociedade perversa, mantendo a tua independência e o teu bom humor.
Essa do efeito do poder - ser visto e não ver - leva o meu voto para virar provérbio popular.
A questão dos ajustes das horas e do teu estômago desajustado trouxe-me à ideia a minha vivência de cinco anos (dos 25 aos 30) na aldeia de camponeses - Sto. António do Marmeleiro, onde tive a minha primeira escola como efectiva. Ninguém traumatizava relógios. Sabiam das horas pelo Sol e pelo estômago. Não havia crise. Também não faziam seguros de nada que tivessem. Qualquer desastre acontecido a alguém era prontamente resolvido pela comunidade. Assim aconteceu quando ardeu toda a casa, vacaria, currais e celeiro aos pais de três alunos meus. Logo foram acolhidos em casas de amigos e imediatamente todos iniciaram a reconstrução de tudo, revezando-se no trabalho que a todos tocou. No final, sobraram quinze contos (naquele tempo era dinheiro) e o bom do homem, já com tudo novo e animais todos novos, não queria aceitar tal dinheiro, alegando que devia ficar num banco para outra necessidade que surgisse. Mas teve de aceitar porque tinha sido pedido para ele. Gente verdadeiramente cristã que, a estas horas, de certo já está diferente pela força da vida.
Gostei de relembrar essas vivências do Sr. Prof. Rogério com a pequenada. E o que é certo é que me fizeste voltar às minhas e deixo-te aqui algumas que me saltaram logo da memória já cansada.
Olha só:
Resposta de um rapazito (Sintra), num teste escrito, à pergunta:
- Como defender-nos dos perigos de quedas, na rua?
- É andarmos tão depressa, tão depressa, ó Senhora, tão depressa que os sapatos não têm tempo de escorregar.
Outro sintrense em redacção de tema livre, solicitada na sala de aula:
«Vou falar dos extraterrestres porque tenho pena deles. Eles fogem da gente porque vêem muitos automóveis e julgam que são animais devoradores. Coitados! Sabem construir discos mas ainda estão muito atrasados».
No ano de 51 a 52, na minha primeira escola, no Alvito da Beira, após a aula de religião. Pergunta:
- Rui, és capaz de contar-nos o que aconteceu a Jesus, quando saíu da última ceia com os apóstolos?
De olhos pregados no chão, o meu melhor aluno recusou-se a falar, com a cabeça pendida e como que envergonhado. À terceira insistência para que dissesse o que bem sabia, respondeu com voz sumida:
- Então... Jesus foi às oliveiras...
E agora esta redacção de uma aluna da 3ª classe de Sto. António do Marmeleiro, que até era inteligente mas que só escutava o que muito bem a motivasse. Pediu-me a Direcção Escolar para enviar redacções sobre o tema «Camões», para um concurso de todas as escolas do distrito. Lá me dispus a colaborar naquele crime de falar aos meus pastorinhos (quase todos) de duas ou três cabrinhas, do nosso Vate.
A Isaura, miúda muito despachada, saíu-se com esta:
«Camões era um homem bom que que foi rei de Portugal, mas ele tinha muitos inimigos que foram dizer mal dele àquele que mandava, e logo o mandaram de castigo para a Espanha e os reis de Espanha deram-lhe cabo de um olho. Aospois ele já andava muito chateiado e veio-se imbora da Espanha prafora, mas no caminho afundou-se».
E remato com esta de um espertalhão (Sintra) que geralmente arranjava maneira de se safar de perguntas "indiscretas" para a sua sabedoria.
Pergunta em teste escrito:
«Que diferença existe entre estes sinais de matemática?»
Resposta: «É que o sinal mais ainda não está cansado».
Tu é que já estás cansado de ler, se é que arranjarás tempo para ler de um fôlego.
(...) Só lamento que os cem mil abraços não tenham sido todos consumidos. Aos professores, falta-lhes o metal para comprar jornais e ainda mais o tempo de lê-los.
(...) Deixo-te para que siga hoje a carta.
Beijinhos e abraços para serem consumidos por todos Vós.
Bem hajas!
Tua madrinha amiga,
Natália"
E não haveria melhor forma de concluir a excelente experiência que foi escrever dez Cartas de Trás da Serra na revista «Perspectiva».
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMas gostei dos comentários dos alunos.
ResponderEliminarDesculpa, este blog é bom, muito bom. :)
Tu decide-te!
ResponderEliminarAssim se provou que a parte de trás da serra chega a parecer a parte da frente, quando a olhamos com olhos de ver.
ResponderEliminar:-)
Grande abraço.
Como gosta de dizer uma nossa amiga, Eça é que é Eça ;O)
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