A Crise é a mãe de todas as crises.
É coisa que dita deste modo parece um chavão mas, na verdade, a crise é a tal criatura mitológica de múltiplas cabeças que, quanto mais se cortam, mais elas aumentam. À luz do argumento espalhado e aceite de forma carneira pela acéfala população, o Estado tem que cortar despesas para poupar esses cidadãos a mais encargos. Ao mesmo tempo em que diz ir reduzir despesa, aumenta os impostos, de onde concluimos que reduzir despesa é um empreendimento muito caro, tanto mais caro quanto mais se cortam: mais e mais cabeças emergem por cada corte feito. A economia não tem compartimentos estanques e os recursos desviados para uma área ficam em falta noutras, prioritariamente nessas que são geradoras dos impostos de que o Estado precisa. O aumento de impostos em quadro de crise tem assim um efeito multiplicador sobre a própria crise.
A maior parte de nós já está anestesiado pela progressiva e lenta marcha da caravana dos média. É a tal metáfora do sapo cozido lentamente. Se o pusessem em água a ferver, ele saltaria de imediato para fora do tacho mas, aquecendo a água devagar, o sapo acomoda-se à modorra do quentinho e quando dá por ela ferve sem dar um ai.
A palavra crise, espalhada como um vírus na sociedade, tem um efeito multiplicador a nível do comportamento colectivo também e, repare-se, as crises económicas são antes de mais psicológicas.
Podemos ver isso na nossa vida prática do dia a dia. Aliás, não há melhor forma de entender as coisas macro que reduzi-las ao universo micro. Lembrei-me de um mês em que não pude usar o carro e onde a poupança da gasolina me custou um par de sapatos e uns serviços de táxi, sem falar na perda de tempo. Também me ocorre a compra de um estojo de chaves para um desenrascanço. Estava de fim de semana em casa de amigos e ofereci-me para um consertozito de ocasião. Assim lá fui à loja chinesa quase ao lado e adquiri as ferramentas. Coisa barata, já se vê, pois estamos em crise e era apenas para uma intervenção breve. Acabei por partir as chaves e ter que ir comprar umas de qualidade. A poupança ficou-me pelo preço fantástico da aquisição de um estojo e de uma colecção de sucata. Todos nós temos casos destes na nossa vidinha do dia a dia. Sei lá... olhem, por exemplo, o vizinho que poupou na conta da água e depois começou a ir comprar as laranjas e demais produtos que a hortinha deixou de produzir. Saltando para o Estado, aquela ministra que despediu dois craques informáticos – ganhavam muito acima da tabela – e contratou depois duas ou três dezenas para fazer o trabalho dos anteriores, mas a um custo por cabeça muito inferior. Upa-upa! Foi uma poupança! Ou ainda e voltando ao meu universo pequenito, o caso de um empregado de uma empresa pública que percorreu de carro, acompanhado do chauffeur, durante uma tarde inteira, todas as lojas da cidade para comprar ao melhor preço um conjunto de pilhas recarregáveis. Acredito que em termos de poupança estas pilhas deverão ter sido as mais caras da História da Humanidade!
As crises são, e sabêmo-lo pela História, ocorrências cíclicas, mas esta tem alguns contornos deveras bizarros.
Nunca se produziram tantos bens e a preços tão baixos como nestes tempos. O comércio é no fundo a troca de bens e serviços. Trocamos o que nos sobra pelo que nos está em falta.
O dinheiro é a expressão abstracta do seu valor. Mas o facto de serem muito baratos deveria querer dizer que temos pouco que dar em troca da sua aquisição. E aqui começa o paradoxo: ao adquirir uma televisão não preciso de dar muito em troca, mas acontece que o que eu tenho para dar não é aceite pelo vendedor pois, para o seu mercado, o meu barato é-lhe caro e não tem escoamento para o que eu produzo. Para que ele aceitasse eu teria que dar-lhe muito mais do que lhe ofereço. Curioso, não é? Como algo barato só o é se atendermos à sua expressão monetária. Recorro então ao dinheiro. Troco o dinheiro pelo bem. Onde é que está o dinheiro? Não o tenho, tenho bens e expectativa de produzir mais, a força do trabalho. O sistema acredita em mim, acredita no sistema e os Países entram em dívida. A dívida não é algo mau por si mesma, não a devemos temer, o que é grave não é dever, mas sim não ter meios para saldar a dívida. A expectativa dos credores é receber dinheiro a partir dos bens que vamos produzindo mas se os Países de onde importamos não querem os nossos bens, então a solução mais rápida é depreciar o seu valor e vender a preço mais baixo para estimular de algum modo a troca e é isto que acontece quando os Estados vão aos mercados financiar-se. E o que era barato passa a ficar muito mais caro pois há que somar ao preço de compra todos os outros custos: dívida, desemprego e depreciação da produção interna.
Outra solução consiste na inovação, de forma a ir ao encontro de novos mercados, mas isso também custa e leva tempo de investimento, além do tempo da formação de capital humano, sem contar na amortização do investimento antes que haja de facto retorno e num país em crise não há espaço para investimentos demorados mesmo que se venham a revelar produtivos a longo prazo. A inovação, se bem que possa ser feita em tempos de crise, deve ser antes levada a cabo nos períodos de abundância e de bons negócios.
Entramos assim na espiral da crise. Pouca gente entende o custo do importar barato. De modo geral apenas se vê o imediato. O lucro fácil, muito localizado no indivíduo mas de efeito perverso sobre toda a sociedade. E neste quadro o que faz o Estado? Exige mais de nós para que, ao termos menos recursos, evitemos essas trocas. O que é grave nisto é o facto de isto fazer com que se limitem todas as trocas e não só as importadas e isto vai fazer com que os bens produzidos cá dentro não circulem com a necessária velocidade para gerar o dinheiro que o Estado exige para o seu próprio funcionamento. Não temos mais fronteiras nem política monetária independente, não podemos aplicar taxas alfandegárias ou mexer com a cotação da moeda. A crise actual é, assim, um monstro sem solução. Talvez a desvalorização rápida do €uro pudesse fazer alguma coisa, ou a aplicação de taxas alfandegárias europeias, baseadas – sei que é utopia – na apreciação dos bens produzidos a baixo preço mas a custo da sobre exploração humana. Apenas isso atenuaria de algum modo o sufoco económico em que presentemente vivemos. Mas o dinheiro é Poder, é afrodisíaco e quem o tem não quer por nada que este perca valor e, tal como disse, o ambiente de crise não gera a confiança para que os detentores o ponham a circular. A tão falada entrada do FMI não resolveria coisa alguma, antes a agravaria. E isto porque vivemos num espaço comum onde todos estão em crise. A receita de aumentar as exportações diminuindo as importações, aplicada a todos os países, faria reduzir ainda mais a actividade económica global. A técnica Espartana do Fundo Monetário, funciona quando apenas um País está em dificuldades num contexto em que os seus parceiros estão de boa saúde financeira.
Qual a solução?
Não me cabe dar, sou apenas um cidadão sem formação nesta área, mas já se ultrapassaram os limites da razoabilidade. Metade de quatro galinhas são duas, metade de duas é uma, metade de uma galinha é meia galinha mas meia galinha não é um ser vivo e é nisso que nos estão a transformar. Meia galinha, em que a parte da cabeça está no Estado, deixando-nos a traseira à sua disposição.
Mas podíamos fazer um exercício simples e recuar novamente à troca directa de bens e serviços.
E num ápice daríamos conta dos inúmeros becos que não devolvem serviços nem bens à sociedade que os sustenta. Dito de outro modo, trabalhamos para a inutilidade e esse esforço desperdiçado faz-nos falta: a ninguém apetece carregar água escassa de um poço para a despejar na abundância de um rio que a leva indiferente ao esforço realizado. E é esta sensação de inutilidade que me trespassa quando me esmifram os escassos €uros nesta toada crescente de um Estado que, não me servindo, está cada vez mais caro.
- Vai um cafezinho?
Muito bom, Charlie!
ResponderEliminarComo eu sempre disse nos meus «universos pequeninos», estes senhores estão a fazer o pior possível para uma organização (no caso, o Estado português) em crise: "uma poupança a todo o custo".
Nunca um trocadilho foi tão certeiro!
ResponderEliminarEstá fixe, não está, Charlie?
ResponderEliminarAs pessoas que já trabalharam comigo, em empresas em dificuldades, «fartavam-se» de me ouvir dizer isto: "Não podemos fazer poupanças a todo o custo".
Clap-clap-clap... - sonoridade de aplauso. Bebo o cafezinho e matuto, cá com os meus botões: ainda voto neste gajo para qualquer coisa. Não sei bem o quê, mas qualquer coisa!
ResponderEliminarSugeri, num artigo qualquer noutras paragens, que se pusesse artigo nos jornais para contratar primeiro-ministro e elenco governativo, com base em competências: eis uma tarefa que poderia caber à Presidência...
Eu vou convosco! E eu que nem bebo café!
ResponderEliminarO Café é mais o Forum que a beberagem.
ResponderEliminarÀ mesa de qualquer Café, tomamos copos de espírito em larguezas de língua.
(Pssst.... a Asae não gosta mas há ainda quem saiba fazer uns medronhos tradicionais, sem paneleirices de etiquetas e tal...MESMO caseiros.... Xiiii.... para beber ja nas nossas casas e falar até o sol se espreguiçar. Dispensamos os cafezinhos)
Ó OrCa, AnAndrade e Raim (que recebeste o convite agorinha mesmo), quando vamos a Beja?
ResponderEliminarE logo eu que me pelo por medronho!... É só combinar.
ResponderEliminarCharlie, não deixes cair no chão.
ResponderEliminarVai, pois! Um cafezinho e uma aguardente velha... a ver se esta "operação crise" dói menos...
ResponderEliminarEu não entendo nada de economia (aliás, estava excelentemente instalada em Marte a tratar da minha vidinha, quando, de supetão, me caíram em cima da migalhinha (recibos verdes), e me obrigaram a regressar por força à Terra), mas bem vejo que, se a falha no sistema foi produzida por uma má distribuição da riqueza, este caminho que percorremos é suicida. Por outro lado, ao contrário do que muita gente pensa, desta vez a crise não tem fim, muito menos para o tempo das nossas vidas. Nos últimos trinta anos todas as regras do jogo mudaram. A tecnologia de construção aliada ao crédito: uma invenção mortífera que determinou que as casas se construíssem depressa e fossem vendidas a valores completamente deslocados do custo de produção… aqui foram hipotecadas muitas vidas... O avanço tecnológico em geral, e consequente redução de postos de trabalho ao que se soma um aumento populacional brutal (em cinquenta anos, de dois para quase sete biliões). E, se quisermos, ainda podemos somar os problemas gravíssimos de equilíbrio da economia global, esgotamento de recursos, etc.. Ou seja… fim de linha.
Agora… pior, pior, não bastasse os problemas que existem, são estes cretinos do governo a amofinar a molécula à malta que, para não ter mais chatices, já se mudou para Marte, e a inventar quantos sistemas podem para acelerar a queda no buraco em que já todos entramos!
Eu também gostava de ser optimista nestas coisas da economia mas, tal como tu, também me parece que isto está tudo a dirigir-se para um beco sem saída.
ResponderEliminarA mim até nem me tem corrido mal... o mercado tem destas ironias... há muito menos trabalho, mas, por outro lado, a concorrência está toda a falir.
ResponderEliminarAgora... francamente! 21,5 de IRS, 29,6 de Segurança Social... e vão 51,1%... depois, a cereja em cima do bolo: IVA a 23%. Imposto ao quadrado! ahahahahahah Contas feitas: 74,1%! E agora? Que dilema! O que fazer com os 25,9% que restam? Pagar mais impostos? É que é já a seguir! Estes gajos são uns pândegos! As entradas são brutas, e as saídas todas líquidas! :)
E ainda não se lembraram de cobrar impostos às... saídas sólidas...
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