No tempo que vivemos, tão pródigo em jogos de espelhos que desfocam a realidade ou, melhor, dizendo, as realidades, tenho acompanhado com deslumbrado interesse este fenómeno, tão orwelliano, tão brandos-costumes, que é o voluntariado organizado no seio de grandes entidades empresariais.
De facto, mais um exemplo actual daquele dito que nos informava de como era diferente o amor em Portugal. A coisa passa-se, mais coisa, menos coisa, deste jeito:
1. Invocando razões indesmentíveis de organização – alguns organizados são mais produtivos do que muitos ao deus-dará – uma empresa promove a criação de um quadro interno de voluntariado, onde os trabalhadores (que já vão sendo chamados colaboradores), se podem e devem inscrever.
Entenda-se que, para os que não se inscreverem, à partida, logo surgirão alguns «sargentos-ajudantes» a questionarem-nos sobre o porquê daquela ausência de espírito cívico.
2. Com implantação na praça pública, essa empresa pode contactar uma ou mais instituições que possam beneficiar de acções solidárias efectuadas por voluntários, pois os tempos vão muito difíceis para a cegarrega dos subsídios e outras gentilezas.
3. Coordenando os tais esforços voluntários internos, a eficácia de qualquer acção virá a revelar-se evidente e indiscutível.
4. A instituição carenciada fica reconhecida até às lágrimas e a custo zero; cada participante sente a sua consciência cívica aliviada, ao mesmo tempo que escala a realização da sua prestação solidária, a caminho de um qualquer paraíso perseguido; a empresa promotora faz um figuraço na praça – e sabe-se bem quanto custa e/ou vale uma boa imagem no mercado. Se a tudo e a todos juntarmos logótipos identificativos e/ou siglas em toda a parafernália logística que a acção voluntária implica, aí teremos, também, a não despicienda publicidade gratuita que decorre, obviamente, da acção em presença.
Eis, então, aqui atingida a quadratura social do círculo, com tudo a ficar bem quando acaba bem.
Para além, entretanto, de questões de ética – sim, sim, que já se sabe que são espúrias neste pós-modernismo em que vivemos… –, onde se poderá, mesmo a medo sussurrado, dizer que uma das coisas que deve caracterizar o voluntariado é algum anonimato, recato e pudor por parte do voluntário, até para não apoucar o ente carente, coisas que ficam espalhafatosamente prejudicadas pela gritaria inerente (TV, rádio, jornais…) a uma acção como a que acima se pretende tipificar, outros aspectos há que a máquina do tempo revela, com o despudor objectivo de quem não tem rabinhos presos.
Pensemos, por exemplo, todos no «day after». Como se processará, na empresa pró-activa, a próxima arregimentação de voluntários para uma futura e não menos solidária acção? Ora bem, em carteira já se conta com o grupo inicial de voluntários inscritos – isto porque a inscrição, à partida, não define ao que se vai. É-se voluntário e chega. E uma vez voluntário, sempre voluntário!
As ovelhas-negras – que as há… – são confrontadas, a partir daí, com a pressão múltipla para aderirem ao grupo: da hierarquia – então, senhor Silva, o senhor é o único que tem sempre dificuldades em ajudar o próximo, homem…– até aos colegas, no íntimo alguns já arrependidos da inscrição primordial, mas condenados a salvar a face, porque a vida não está fácil – eh, pá, tu vê-me lá se não deixas ficar mal o departamento, pá… A Contabilidade levou os gajos todos, pá!
No fundo, como se em voluntariado se tratando, se pudesse perder algum jogo por falta de comparência e com toda a equipa a saber.
E haja, depois, quem experimente ou tente só «desarriscar-se» da inscrição feita, a ver o que lhe acontece…
Em cúmulo, se analisadas algumas (tantas) destas acções «voluntárias» – a partir deste momento do discurso já se pode começar a colocar aspas – verificamos que elas incidem sobre campos (recuperação de imóveis, pintura de paredes de instituições, promoção de «espectáculos» com a mais ou menos desajeitada prata-da-casa, etc., etc.) onde, por acaso, até existem imensíssimos profissionais em profundo estado de desemprego, para quem a chegada destes adventícios «voluntários» ainda entope mais a possibilidade remota de um ganchozito ou de alguma empreita que lhes ajude a dar de comer aos filhos, quando não a si próprios.
Há, pois, aqui e no meu fraco entender, uma vertente perigosamente similar à grandessíssima função social de uma dona Isabel Jonet que ajuda a matar a fome a quem a tem à custa de enchermos, tantos de nós, os bolsos dos donos das grandes superfícies. Aí, não apenas os preços praticados para os bens ditos de primeira necessidade não baixam um cêntimo nos dias de campanha, como a sua distribuição acaba por ser baratucha, à conta dos exércitos de voluntários que se apresentam para ajudar quem precisa. E toma lá que é solidário!
Mas, claro, nada disto se deve dizer, pois fica-se muito mal na fotografia… E a fome que, como se sabe, é negra, não é nada propícia a conviver com o arco-íris…
Dá ainda uma ideia errônea do que o voluntariado é. Julgam que o voluntariado é esporádico, bonito e cheio de finais felizes. Não conseguem ver a abdicação, as escolhas e o desgaste físico e emocional. Não conseguem entender a frustração de sentirem que as suas acções serão sempre insuficientes. Para quem o pratica durante todos os dias do ano e luta diariamente com as dificuldades e incompreensão (quando não criticas) do cidadão comum, esta é uma época repugnante...
ResponderEliminarOra eu não podia estar mais de acordo do que aqui fica dito!
Eliminar"Vamos brincar... à caridadezinha..."
ResponderEliminarDesconcordando em absoluto com o Freak Perfumado, essa coisa de tocar o violino choradinho a pedir solidariedade aqueles que todos os dias sentem sobre si mais e mais pressão, soa mesmo a muito desafinado.
ResponderEliminarO dar deve sempre ser com a mão esquerda e de tal forma que a direita nunca venha a saber da dádiva.
Ou seja, esporádica, episódica e nunca institucionalizada como de facto o é neste momento
Quem conhece um mínimo de uma orgânica empresarial, com todos os fluxos de logístical etc, saberá sem grandes rebuscamentos de gestão, que cada campanha de "solidariedade" é planeada, prevista e lançada nas previsões contabilística
É em resumo um bom negócio.
Um bom negócio porque há muita gente a trabalhar a escoar-lhes produtos sem cobrar nada.
É um bom negócio porque essa causa lhes traz lucros acrescidos
Um bom negócio porque beneficiam de uma publicidade extra que os coloca do lado de quem dá, sem que isso lhes faça dar coisa alguma.
E a gente está mesmo fartinha de pagar, crise após crise, os grandes negócios deles.
Apenas duas notas que me parecem necessárias:
EliminarPrimeiro, o nome do blog é "Freak Perfume". Uma vez que eu não desrespeitei ninguém, apenas partilhei uma opinião, agradecia que essa mesma fosse respeitada. Direito a discordar temos todos, mas dispenso trocadilhos que são por mim considerados ofensivos.
Em segundo lugar, penso que o que eu disse em nada remete para "violino choradinho a pedir solidariedade". Além disso, o voluntariado esporádico "serve" quando não existe uma responsabilidade directa. A partir do momento em que existem pessoas ou animais a cuidado de qualquer grupo de voluntários, não podemos alimentá-los "esporadicamente", medicar "esporadicamente" ou limpar "esporadicamente".
O Charlie não quis ser ofensivo, obviamente. E opiniões são sempre bem vindas, principalmente quando são bem fundamentadas, como as tuas.
EliminarNem faço questão de apresentar desculpas por algo que apenas teve a ver com um lapso sem qualquer intenção, nem de trocadilho e muito menos de teor ofensivo.
EliminarTirando essa carga de dolo, apenas lamento o facto de me ter enganado e mais nada.
Depois, a sua opinião nem só é bem vinda como importante.
Mas permita-me que insista na tese. Somos em tese um Estado Organizado.
Assim, cabe ao Estado um conjunto de funções para quais os cidadãos trabalham e pagam.
O Estado é até cioso nas suas competências.
Ninguém está autorizado a cobrar impostos, só o Estado,
Ninguém pode exercer Justiça que não seja o Estado.
Ninguém está autorizado a exercer a Defesa Armada que não seja o Estado.
Por que raio é que o Estado se omite cada vez mais das outras obrigações?
Porque é que teremos de ser nós todos, que já pagamos para isso, a tomar em mãos as obrigações colectivas ou seja, as obrigações do Estado?
Não haverá uma redundância nisto?
Ainda para mais, que ele não se omite de cobrar IVA e não sei se mais outros impostos, de cada vez que se faz um apelo para a obtenção de receitas com os fins obviamente nobres e muitas vezes inadiáveis.
Não discordo da ajuda, cada vez mais premente na medida em que a crise se agrava. O que me revolta é isso que disse o Paulo: vamos brincar à caridadezinha, o Estado agradece, os Hipers também e na lógica do Estado, se as pessoas ainda tem algo para dar, é por que se se calhar há uma margem e podem cobrar ainda mais uns impostozitos.
E nesta esteira, a ajuda pontual - que insisto: deveria ser isso mesmo pontual- passa a ser institucionalizada, um sistema dentro de outro com todas as perversões daí decorrentes.
E sei do que falo pois também fui colaborador em tempos idos.
Mas adiante:
Devemos ser solidários, a base da sociedade passa por aí, somos uma super estrutura gregária de interesses comuns e quando isso falha a sociedade colapsa, é o cada um por si, a lei da selva, o voltar atrás no degrau civilizacional. E dada a situação aflitiva em que milhares de pessoas se encontram é efectivamente importante acudir às necessidades dessas pessoas de forma imediata, assumindo cada um de nós de novo uma função de Estado, super estrutura colectiva e que deveria ser solidária.
Constata-se assim existir uma situação de quase refém das circunstâncias: não se pode deixar de ajudar e de forma perversa, ao Estado, este tipo de Estado gerido por esta gentinha, dá jeito que assim seja, e é contra isso que vai o meu sentido de revolta, e não contra quem ajuda, e muito menos contra os que precisam aflitivamente de ajuda, e que amanhã podemos se nós, já que ninguém está livre de que o céu com cores de inferno lhe caia em cima.
Como digo lá mais para cima, subscrevo o comentário do Freak Perfum, até por se referir a uma postura na vida que eu partilho. O Charlie terá lido um pouco depressa demais, mas já se redimiu dessa observação apressada, como compete e dele sempre se espera.
ResponderEliminarDe facto, tenho do voluntariado nada mais, nada menos, do que a noção de que se trata de uma decorrência do exercício normal de cidadania... a que alguns preferirão chamar participação.
E deste exercício deve ser banida toda e qualquer referência a euros, libras, dólares ou meras patacas, pois aí está a coisa desvirtuada. Do mesmo modo, a exposição pública, que vai distorcer todo o conceito.
Voluntariado será, sem tirar nem pôr, o exercício solidário de cidadania e, como tal, sóbrio, discreto, individual. Pelo contrário, aquilo a que assistimos nos media não passa de uma lamentável feira de vaidades... para não chamar coisas bem mais merecidas. Com a agravante de contar com (e explorar) o desnorte de quem quer ser solidário sem saber lá muito bem como...
Entretanto, não ficaria de bem comigo, se não subscrevesse também a revolta do Charlie quanto à demissão a que assistimos por parte dos agentes do Estado quanto àquilo que são as suas obrigações.
ResponderEliminarNa verdade, é SEMPRE ao Estado - que nos cobra os impostos - que compete a sua justa redistribuição. Quando tal deixa de ocorrer, para quê pagar os impostos?
E não me venham com tretas da «crise» que assola o país mais as «condições especiais» que ela acarreta. Condições especiais levariam ao confisco puro e duro de todos os «capitais» criminosamente obtidos por BPNs, BANIFs e outros patifes. Acarretaria também uma imensa e intensa moralização dos proventos que cada um aufere, públicos ou privados, que a nação é uma só.
E nada disto ocorre neste pântano apodrecido em que (des)vivemos.
Estes desGovernos matam-nos.
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