Algumas vezes, enquanto a minha mãe fazia as compras lá dentro, eu ficava cá fora, junto aos caixotes da fruta e dos legumes, a brincar com a filha duma outra cliente que costumava ir lá à mesma hora. Não me lembro do nome dela, mas lembro-me que tinha o cabelo preto e comprido, olhos escuros e soltos como o voo duma borboleta. Costumava arrancar algumas uvas que dividia comigo e, apesar de ter na altura apenas uns seis ou sete anos de idade, foi ela que me ensinou como é que das uvas podíamos fazer passas.
Fascinava-me, aquela miúda. Aliás, como eu não tinha coragem de roubar uma única uva que fosse, foi com ela que comecei a perceber que as mulheres são demasiado corajosas para quem é do sexo fraco, e que os homens são demasiado cobardes para quem é do sexo forte.
O caderno do senhor Orlando seria, aos olhos de qualquer estudante de Economia dos dias de hoje, um produto financeiro de alta rentabilidade. Ali estavam promessas de pagamento da despesa mensal em alimentação de inúmeras famílias aveirenses, ou seja, de muito dinheiro. Esse produto financeiro seria, assim, nos dias que correm, alvo de especulação em bolsa e uma forma de cobrar juros pela demora no pagamento. O senhor Orlando, no entanto, limitava-se a abrir o caderno de vez em quando para informar os clientes em quanto é que ia a conta.
Com o tempo, todas as lojas pequenas como a do senhor Orlando foram substituídas por grandes superfícies comerciais. Simultaneamente, o caderninho onde se apontavam as despesas foi substituído por cartões de crédito. Ao contrário do senhor Orlando, os hipermercados não acreditam na palavra de pessoas como a minha mãe, por isso os bancos passaram a servir de garantia desse pagamento cobrando uma taxa a uns e outros.
Essa taxa chega, diz o grupo Jerónimo Martins, aos cinco milhões de euros por ano, por isso quer acabar com os cartões de crédito (e débito também) para despesas inferiores a vinte euros nos supermercados Pingo Doce. O senhor Orlando não faz ideia do dinheiro que deixou de ganhar por nunca ter cobrado taxa nenhuma aos seus clientes e eu, como não acredito que os supermercados Pingo Doce venham a ter empregados de caixa com um lápis atrás da orelha, nem acredito que uma mulher qualquer simpática venha a roubar uvas para dividir comigo, vou continuar a não ir lá.
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
e
Blog a funda São
obrigado São Rosas. :)
ResponderEliminarA malta é que te agradece ;O)
EliminarMagnifico texto!!!
EliminarA verdade é mesmo essa que ele tão bem escreve, este nosso bagaço amarelo, (coisa que devo dizer em abono da verdade, detesto).O
A agravante disto tudo, é que o sistema está fechado em tenaz. Qualquer negociozinho da treta tem à partida um pacote de despesas fixas como se tratasse de uma grande empresa. Ninguém pode ser, mesmo que o queira ser apenas por passatempo, um senhor Orlando. Nem o Fisco, nem a Asae, nem a Segurança Social, nem a obrigatoriedade de ter conta bancária ligada à empresa e contabilista dariam a paz de alma necessária ao apontar a lápis as contas dos clientes no intervalo do puxar lustre às maçãs expostas junto à porta da rua.
A Banca não empresta, cobra taxase comissões por tudo e por nada, inventa a toda a hora coisas, troca a cronologia dos lançamentos de depósitos e levantamentos de forma a mostrar sempre um saldo desfavorável ao cliente e marginalmente apresentar-se como credor em situações onde efectivamente nunca o foi e por essa via cobrar mais uma quantia.
Os produtores, na mão dos Pingos Amargos e outros quejandos, por sua vez não podem vender aos senhores Orlandos, por um lado não os há, por outro, mesmo que os houvesse, dificilmente os poderiam abaster devido ao redimensionamento a que foram obrigados.
Contudo, a gravidade do abastecimento de víveres é muito mais grave. Neste momento, exactamente neste momento, o Planeta já não produz alimentos armazenáveis, ou seja, estamos a consumir praticamente em défice. Isto quando há sessenta anos a armazenagem de alimentos rondava a média de quatro semanas. Há menos de uma década era apenas de uns cinco dias. No ano passado era já só de um dia, e actualemente consome-se metaforicamente a fruta ainda na semente.
O que virá daqui, não é nada de bom como se pode facilmente inferir: a primeira crise climática, ou catástrofe natural, que ciclicamente afectam as produções, trarão uma grave consequencia sobre os preços dos alimentos. Os especuladores já sabem disto. Os alimentos são neste momento "activos estratégicos" tão ou mais valiosos para os fundos de investimento quanto as Acções das petrolíferas.
Da lei da oferta e da procura facilmente se pode prever o que o futuro nos pode trazer. De tanta falta que nos fariam os senhores Orlandos da mercearia, e os senhores Joaquins da horta, irão sobrar os tubarões dos pingos amargos, a vender cada vez mais caro o que propagam ser o mais barato.
Naco de prosa muito interessante, na verdade... E ao contrário do Charlie, eu até gosto de bagaço amarelo.
ResponderEliminarVerdade, verdadinha é que os senhores do dinheiro se apropriaram de tal modo dos circuitos alimentares que nos têm a todos na mão. Passo a passo, paulatinamente, até esgrimindo com os fantasmas da «saúde pública», de onde decorreram «normalizações» e tudo muito reguladinho, de tal modo que nem sei se posso oferecer uma laranja da minha árvore à minha vizinha sem correr o risco de me aparecer uma qualquer «asae» aos gritos de prevaricação e esconjuro.
Tempos da treta e de descontentamento em que é fundamental que cada um de nós saiba - e se não souber deve aprender - o magnífico gosto dos sabores e dos saberes da terra!
Em vez de «think globally, act locally», eu prefiro pensar e actuar localmente.
ResponderEliminarE pensas muito bem ao pensar e agir "anti-Bench marking".
ResponderEliminarQuando toda a gente faz o mesmo e se esmifra para obter vantagem, nada como fazer diferente e obter os proveitos calmamente por essa via.
Os meus proveitos têm sido o sossego e a paz de espírito.
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