Um dia, em tempos idos, e na Feira dos 23, quando na altura se vendiam
por lá peças de gado e outras alimárias que tanto ajudavam o homem no amanho
dos campos do Mondego, o Sr. Manuel teimava em perguntar o preço de um burro
meio lazarento, talvez já velho, e que era cego do olho direito.
Um seu vizinho, ao ver o negócio em que ele se ia meter, apalavrou em
voz baixa as cautelas que achava por bem ter em tão estranho negócio. Até
porque conhecia bem o animal que estava em causa.
— O Ti Manel, que raios, homem, para que é que vossemecê quer o
animal? Não vê que ele é cego?
— Isso vejo eu bem, e é por isso que acho que serve bem os meus
propósitos. Até lhe digo mais, se for como eu penso, é o bicho ideal para
aparelhar com o meu Mimoso.
O vizinho, homem bom e solidário, espantou-se genuinamente com tão
desencaixada ideia: — — Então, mas vossemecê já virou quantos copos de três?
Quer aparelhar o burro com o seu boi, logo o Mimoso, o majestoso boi de todos
os campos de Montemor? E sabe o senhor que este burro, sendo cego do olho
direito, só puxa, e muito, para a
esquerda?
— Ora aí está o ponto aonde quero chegar, — refunfou o agricultor.— É
exatamente isso que eu quero. E explicou — por acaso infeliz, o meu Mimoso puxa
ligeiramente à direita e, além disso, a charrua 3B que eu tenho lá no alpendre tem
a relha e a aiveca também um tudo nada viradas à direita e a rabiça empenou com
o tempo, para a direita. Quando me meto a virar a leiva, não consigo que o rego
siga a constante e tenho a terra inculta e posso sofrer à fome. Na decrua e na
sementeira nada fica como deve ser, porque as leivas são tortas e todas viradas
à direita.
— Então, e o que tem o burro com isso? — Perguntou ainda o vizinho,
não atingindo a visão ‘da coisa’.
— O que tem? É simples. Com o burrico a puxar insistentemente para a
esquerda, vou conseguir que a leiva vá consistente, a direito e produtiva, com
promessas de boa colheita.
Assim é a política. Em verdade vos digo, que se não fossem os burros das
forças que lutam pelos direitos cívicos, laborais, sociais e outros, estaríamos
todos a virar leivas improdutivas, a seguir o glorioso líder com horários de 72
horas, muito mais mal pagos, sem direito a fim de semana, sem subsídios de
férias e de Natal, etc. Choca-me imenso que muitas pessoas pretendam reescrever
a história, negando aos movimentos de oposição o papel de fiel que tiveram para
que a sociedade seja menos má do que seria.
O que é preciso é que o burro, ainda que velho, esteja lá e vivo, não
em peças, como aquilo em que a esquerda parece hoje querer transformar-se. E
tenho pena, muita pena, porque vamos sofrer com as leivas mal alinhadas.