fevereiro 17, 2015

«O Syriza improvável» – José Gil

Foto DN
O que é «ser de esquerda»? O que distingue um pensamento e uma acção de esquerda dos de direita? A clivagem entre esquerda e direita, hoje tão desacreditada, readquiriu uma súbita pertinência, com acontecimentos recentes como a irrupção de um partido «radical» na cena política da Europa. A vitória do Syriza e as primeiras medidas do seu governo provocaram pequenas ondas de esperança e tempestades de fúria – curiosamente, não na opinião, mas nos partidos, grupos e indivíduos com intervenção no espaço público.
Como reagiram os que saudaram o Syriza? Com empatia imediata, não tanto pelo seu programa partidário como pelo que trazia de inovador no plano dos investimentos político-existenciais. Sabendo, como o povo grego que nele votou, que as probabilidades eram poucas de concretizar as promessas eleitorais, os que o apoiam encontram nele uma fonte de forças para agir e pensar diferentemente.
Já os que o criticam se exprimem noutro tom. No tom conhecido do «bom senso», amplificado agora por uma espécie de estridência de ódio e pavor que faz tremer os responsáveis políticos europeus. Curioso, este ódio, em pessoas que se pretendem moderadas, condenando toda a espécie de extremismo e «radicalismo» (o termo «radical» equivale ao negativo absoluto, ao «diabólico»).
De onde vem ele? Certamente daquelas raízes que Nietzsche tão bem caracterizou – do ressentimento dos que estão habituados a dominar e a serem reconhecidos como o valor supremo e que se vêem, de repente, ameaçados no seu conforto, material e moral. Por quem? Por gente que ousa aquilo que nunca ousaram o «excesso» e que sempre secretamente desejaram, gente «irresponsável», «irrealista», «sonhadora», «infantil», etc.
ALÉM DO ÓDIO, O MEDO. Como se este se tivesse globalmente transferido do povo grego para as instâncias dirigentes europeias. Como tentam elas expulsar o medo que as invade? Com ameaças de exclusão da zona euro ou de insolvência do Estado grego. Querem «pôr na ordem» os gregos, dominá-los, domá-los, forçá-los a obedecer. Que eles abandonem as suas «fantasias» e «cumpram as regras».
Temos aqui a ilustração do que é «ser de direita», segundo critérios não ideológicos: é preferir codificar, marcar, controlar os fluxos de energia e de desejo a deixá-los passar livremente. Ser de esquerda é dar uma atenção preferencial à libertação de fluxos e de linhas de fuga. Opções já inscritas no inconsciente. Há militantes «ideologicamente» de direita que são profundamente de esquerda: revelam-se anarquistas igualitários populares quando os investimentos atingem uma certa intensidade.
Outros, de esquerda, são intrínseca e inconscientemente de direita – tirânicos, prepotentes, paranóicos (na vida privada, por exemplo). Assim se explica como tantos militantes de grupúsculos de extrema esquerda, na Europa dos anos 60 e 70, venham ocupar postos dirigentes de partidos de direita: o que visavam inconscientemente, na juventude, era já o poder institucional a que acederam na idade adulta.
A DIREITA CONSERVA ou reforma e inova – para recodificar novamente numa grelha estrita. A esquerda prefere criar o novo libertando o acaso.
Como não saudar a irrupção do Syriza na cena político-existencial da Europa – da Europa adormecida, paralisada, auto anestesiada pela sua moral niilista do «bom senso», do «justo meio», da «via única»? Nunca vivemos um tónus de vida tão baixo, tão pobre, tão espiritualmente desgraçado, tão resignadamente desesperado.
É isto a Europa? A Europa dos anómalos, dos criadores, dos Shakespeare, dos Hölderlin, dos Rimbaud, dos Pessoa, dos Van Gogh e dos Artaud? Estes seres «improváveis», «impossíveis» abriram campos inauditos à criação e à cultura da Europa. Não deveríamos tê-los domado, tê-los «posto na ordem» antes de eles... «ousarem»?


José Gil

Ensaio publicado na revista «Visão» de 12 de Fevereiro de 2015

9 comentários:

  1. Improváveis somos todos nós
    firmes na espuma das águas
    quando um belo barco passa
    por uma nesga de sol

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  2. sempre assim foi na "ordem" das coisas - os que "ousam" e ... os que "temem"...

    e quem nada tem a perder, nada teme!

    abraço

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  3. É muito improvável sabermos, realmente, quanto vai de fidelidade a uma ideologia partidária. Fiel ao interesse coletivo? Fiel aos interesses de um determinado grupo? Fiel até que não atinja os "meus" bens financeiros e patrimoniais?
    Vivenciamos isso por estas paragens. Quando a "esquerda" assumiu o poder, penso que a maioria dos brasileiros teve esperança de que a situação melhoraria, em todos os segmentos (e olha que nem estava tão ruim assim!), porque - até então - estava, a "esquerda", apenas no papel de "acusadora", de apontar o dedo nas supostas falcatruas do governo da tal "direita". Apresentava-se como um partido de esquerda que defendia o socialismo como forma de organização social (mas na prática, rejeitam o socialismo real implantado em alguns países, por exemplo).
    As eleições para presidente do Brasil, novamente realizadas, e, em janeiro de 2003 Lula assumiu a presidência (confesso que até eu vislumbrei o Paraíso, por propagarem que estávamos vivendo um "inferno"! ). Afinal, um quase analfabeto - como ele gostava de ser chamado - assumia o Poder, o Estado. Então, pressupõe-se saber, mais do que ninguém, as agruras do povo. Foi metalúrgico, sem contar que tem as marcas da Ditadura, na pele.
    Assumiu a presidência, e, com ele, todos os amigos do Partido de Esquerda. Aos poucos, assistimos ao desenrolar de uma "ideologia" mascarada, vulnerável. Aquilo que repudiavam na chamada "direita" passaram a praticar em dobro, no Poder. Voou dinheiro na cueca; desvios de verbas públicas; mensalão aos políticos do Partido do Trabalhador (PT) e, mais recentemente, o caso desonroso da Petrobrás. A economia do BR, nesse período, tem estado à beira de um colapso; impostos aumentaram; crise hídrica; crise de energia elétrica; as estatais entraram na falcatrua; presidente de um dos maiores bancos concedeu empréstimo a uma "socialite", sem que ela tivesse margem para a vultuosa quantia - e ainda colocou o endereço do Banco (e não o dela) como indicador. E pasmem: o dito foi indicado para presidir a estatal em colapso. E esse cenário acontece em simultâneo. Nem é coisa de dizer que o caso foi esquecido.
    Aqui, mudam de partidos como se mudassem de cueca. A tal ideologia política vai para onde apontam mais ganhos, mais sucesso...(para seus bolsos, naturalmente).
    Não se tem como avaliar a conduta de um Partido e nele acreditar, porque,infelizmente, são pessoas que lá estão (e não poderia ser diferente). E pessoas são corrompidas, corrompem, destroem esperanças, como também constroem outras à base de areia: apenas concretam o caminho para chegarem ao Poder.
    É isso. Vamos aguardar e esperar que o Syriza governe deixando as diferenças ideológicas e históricas de lado, em prol do bem comum.

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  4. Vamos ver. Eu não estou muito optimista, com a visão dogmática dos Europeus-do-Norte...

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  5. Ser Esquerda é ser criança
    é ver o futuro sempre verde na mão
    Ser de direita é
    Ser velho
    É não acreditar na mudança
    É ter medo de pensar
    que há outro pensamento
    Que poderia fazer de novo
    O velho errar como erram
    as crianças, até acertarem
    na mudança.

    A velha religião, o Mitraísmo, onde muito do nosso Cristianismo foi beber, condensa muito bem o que se passa na mente humana nas suas construções metafísicas onde se faz o divino à imagem do homem.
    Nasce o menino no princípio do Ano, matando o touro velho, cheio de vício, para que ele menino cresça e se torne touro para ser morto por fim por outro menino de outro novo ano.~
    Ser de esquerda toda a vida é um exercício especial e complexo: para todos.
    E a maioria não consegue: o touro cresce tanto à volta do umbigo que nem consegue mais olhar para baixo e ver a criança

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  6. Ser de esquerda é um modo de ser... Como ser de direita, também o é. Mas são diferentes modos de olhar a Vida e, principalmente, de olhar o «outro».

    O poder é um mero (ainda que pesado) circunstancialismo que pode corromper e, geralmente, corrompe o idealismo, a capacidade para sonhar de olhos bem abertos. E, como se sabe, no homem a carne é fraca, mas o desejo de poder parece não ter limites.

    Mas de que homem se fala aqui? Desse tal «de direita», o que não olha a meios para atingir os fins e para quem o exercício do poder acaba por ser um fim em si e nem sequer um meio... E nem interessa qual a bandeira que abraçou, pois essa, sim, há-de funcionar para ele como mero trampolim.

    Mas o José Gil apresenta muito bem a coisa.

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  7. Caríssimos,
    As pessoas podem ser de esquerda, mas nem têm esse olhar para o novo, para as mudanças; as pessoas podem ser de direita, e muito menos permanecerem no "deixa estar". Louvo as ideologias pautadas em atitutes que correspondem com o que defendem, com o que propagam. Vê-se tanto tanta gente sendo de esquerda tendo atitudes de direita, e vice-versa, que nos leva a acreditar que há algo mais em jogo - e não é raro saber-se que os interesses nem são assim em prol da coletividade, e nem dos menos abastados.
    Tanto é que há uma corrida desenfreada de candidatos querendo ser de "esquerda" ou de "direita", dependendo de onde estejam a oferecer mais vantagens.
    É isso.

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    1. Sim Mamãe, há quem seja de E ou de D como se é de um clube de futebol.
      No fundo, Cristo era de Esquerda, e a Igreja é tendencialmente de Direita, o menino deus cresceu para Minotauro....

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