julho 28, 2015

«Dívidas» - Crónica de José Luís Peixoto

Quanto devemos aos bombeiros voluntários? Enquanto estamos aqui, preocupados com os nossos assuntos, a tratarmos daquilo que nos diz respeito, eles estão disponíveis para serem arrancados da sua vida e colocados à frente de chamas, incêndios que não foram ateados por eles, a arrasarem propriedades que não lhes pertencem. É domingo à tarde, por exemplo, e, de repente, estão num carro a alta velocidade, arrastam uma sirene desesperada ao longo do caminho. Encontram aflição quando chegam, desenrolam uma mangueira áspera e respiram golfadas de fumo que lhes mascarra as faces. Passam horas assim e, no final de tudo, a sua recompensa será assistir à desolação de um campo negro e, talvez, beber de um pacote de leite oferecido por alguém.

Há bombeiros voluntários que morrem durante esse trabalho. Quanto devemos à sua memória? Quanto devemos às famílias desses bombeiros mortos? Agora, onde estiverem, sentem a sua ausência em todos os dias. São pais, filhos, maridos, mulheres, irmãos que imaginam como seria a vida daqueles que perderam, imaginam-nos com idades que nunca chegarão a ter.

Quanto devemos aos técnicos do INEM? Quanto devemos aos enfermeiros? Quanto devemos às pessoas que recebem os doentes nas urgências dos hospitais? São poucos os que têm paciência de preencher os papéis, mas os papéis precisam de ser preenchidos.

Quanto devemos aos professores? Não sabem onde vão trabalhar para o ano, não sabem se terão trabalho. Quanto devemos aos jovens em cubículos de call-centers? Quanto devemos aos estagiários não remunerados? Quanto devemos aos vendedores com excesso de habilitações? Quanto devemos aos desempregados?

Quanto devemos aos músicos? Depois de aprenderem a tocar, passam anos a fazê-lo de borla para nosso divertimento e, garantem-lhes, para mostrar o seu trabalho. Ao fim da noite, entre o público, poucos considerarão trabalho aquilo que eles fizeram. E quanto devemos aos bailarinos? Quanto devemos às bailarinas? Quanto devemos às atrizes? De repente, colocam-nas no centro de todos os olhares, de todos os julgamentos, a troco de uma oportunidade. Uma oportunidade de quê? Uma oportunidade de uma oportunidade. Serão velhas e terão a mesma maquilhagem. Quanto devemos a todos os que trabalham para que exista teatro e cinema neste país?

Quanto devemos aos desportistas das chamadas modalidades amadoras? Levam o equipamento na mochila, vão para o treino depois do trabalho, chegam tarde a casa. Os fins-de-semana são pequenos, acabam depressa. E quanto devemos aos atletas paralímpicos? Com muita probabilidade, quando os jogos forem notícia, havemos de contar medalhas de modalidades que desconhecemos e teremos moral para exigir; diremos cinco ou seis, sem nos lembrarmos que, atrás de cada uma, está o esforço contínuo de alguém durante anos.

Já que falamos nisso, quanto devemos àqueles que têm mobilidade reduzida e que não podem sair de casa? Não há rampas, há carros estacionados em cima de passeios com buracos, não há dinheiro para comprar a cadeira de rodas adequada. São prisioneiros sem culpa formada, sem acusação, sem julgamento. Foram condenados a prisão domiciliária. Não há data marcada para o fim da sua pena.

Quanto devemos aos guardas prisionais? Estão agora atrás de muros, rodeados de ameaças. Quanto devemos aos homens do lixo? Queixamo-nos do barulho que fazem quando recolhem o nosso próprio lixo. Não queremos ser incomodados, estamos a repousar. Quanto devemos às mulheres-a-dias? Havemos de culpá-las se desaparecer alguma coisa. Quanto devemos aos coveiros?

E quanto devemos aos credores internacionais? Definiram juros e emprestaram aquilo de que não precisavam a outros que estavam aqui e que se retiraram na hora de pagar. Ficámos cá nós, não temos para onde ir. A propósito, quanto devemos àqueles que emigraram? Deixaram a família contra a sua vontade. Vimo-los partir. Sentimos a sua falta.

Afinal, quanto devemos aos bancos e às instituições económicas internacionais? Nunca lidámos com elas. Os acordos foram feitos em nosso nome mas, tantas vezes, sem o nosso conhecimento. Enquanto isso acontecia, estávamos a viver, acreditando que contribuíamos para a construção, dignidade e prosperidade do país a que pertencemos. Quanto devemos a nós próprios?

Não se trata de não pagar as nossas dívidas, trata-se de saber a quem devemos.

José Luís Peixoto
in revista Visão (23 Julho 2015)

1 comentário:

  1. E depois ainda têm de aturar a pesporrência vazia de um qualquer secretário de estado, recém empossado, que de incêndios só sabe o da sertã de azeite da vizinha que pegou fogo quando ele era criança.
    O atrevimento de passarem constantes anátemas aos que dão o seu tempo aos outros num gesto de absoluta dádiva cuja natureza, contrariamente aos políticos, não há dinheiro que pague.
    É no mínimo revoltante, e só estranho não ter havido nenhum comandante de bombeiros que não tenha convidado os recorrentes iluminados a pegarem numa mangueira, Ali, ao lado deles, para sentir o contrapeso infernal do calor no outro prato da balança onde eles colocam a basófia.

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