julho 03, 2015

«O contrassenso comum» - Boaventura Sousa Santos

As privatizações podem ou não gerar eficiência. Quase sempre se traduzem em aumentos de tarifas; e as de serviços essenciais traduzem-se na exclusão social dos cidadãos que não podem pagar os serviços.

Em 1926, o poeta irlandês W. B. Yeats lamentava: "Falta convicção aos melhores, enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade." Esta afirmação é mais verdadeira hoje do que então. Admitamos por hipótese que os melhores no plano pessoal, moral, social e político são a maioria da população e que os piores são uma minoria. Como vivemos em democracia, não nos devia preocupar o facto de os piores estarem cheios de convicções que, precisamente por serem adotadas pelos piores, tenderão a ser perigosas ou prejudiciais para o bem-estar da sociedade. Afinal, em democracia são as maiorias quem governa.
A verdade é que hoje se vai generalizando a ideia de que as convicções que dominam na sociedade são as apaixonadamente subscritas pelos piores, e que isso é a causa ou a consequência de serem os piores quem governa. A conclusão de que a democracia está sequestrada por minorias poderosas parece inescapável. Mas se aos melhores falta convicção, provavelmente também eles não estão convictos de que esta conclusão seja verdadeira, e por isso ser-lhes-á difícil mobilizarem-se contra tal sequestro da democracia. Torna-se, pois, urgente averiguar donde vem no nosso tempo a falta de convicção dos melhores.
A falta de convicção é a manifestação superficial de um mal-estar difuso e profundo. Decorre da suspeita de que o que se difunde como verdadeiro, evidente e sem alternativa, de facto não o é. Dada a intensidade da difusão, torna-se quase impossível ao cidadão comum confirmar a suspeita e, na ausência de confirmação, os melhores ficam paralisados na dúvida honesta. A força desta dúvida manifesta-se como aparente falta de convicção.
Para confirmar a suspeita teria o cidadão comum de recorrer a conhecimentos a que não tem acesso e que não vê divulgados na opinião publicada, porque também esta está ao serviço dos piores. Vejamos algumas das convicções que se vão tornando senso comum (em itálico) e que, por serem ilusórias e absurdas (comentário em redondo), constituem o novo contrassenso comum:
A desigualdade social é o outro lado da autonomia individual. Só é autónomo quem tem condições para o ser. Para o desempregado sem subsídio, o pensionista empobrecido ou o trabalhador precário, a autonomia é um insulto cruel.
O Estado é por natureza mau administrador. Muitos Estados europeus dos últimos 50 anos provam o contrário. O Estado só é mau administrador quando os que o controlam conseguem impunemente pô-lo ao serviço dos seus interesses particulares por via da corrupção e do abuso de poder.
As privatizações permitem eficiência que se traduz em vantagens para os consumidores. As privatizações podem ou não gerar eficiência. Quase sempre se traduzem em aumentos de tarifas, seja dos transportes, da água ou da eletricidade. As privatizações de serviços essenciais traduzem-se na exclusão social dos cidadãos que não podem pagar os serviços. Se o privado fosse mais eficiente, as parcerias público-privadas ter-se-iam traduzido em ganhos para o interesse público, o contrário do que tem acontecido.
A distinção entre esquerda e direita já não faz sentido porque os imperativos globais da governação são incontornáveis e porque a alternativa a eles é o caos social. Enquanto houver desigualdade e discriminação sociais (e estas têm vindo a aumentar), a distinção faz todo o sentido. Setores importantes da esquerda (partidos socialistas) caíram na armadilha deste contrassenso comum, e é urgente que se libertem dela. Os "imperativos globais" só não permitem alternativas até serem obrigados a isso pela resistência organizada dos cidadãos.
A política de austeridade visa sanear a economia, diminuir a dívida e pôr o País a crescer. Nos últimos 30 anos, nenhum país sujeito ao ajustamento estrutural conseguiu tais objetivos. Os resgates têm sido feitos no exclusivo interesse dos credores, muitos deles especuladores sem escrúpulos.
Portugal é um caso de sucesso; não é a Grécia. O maior insulto aos melhores (a maioria) do nosso país. Basta ler os relatórios do FMI para saber o que nos está reservado depois de a Grécia ser saqueada. Os cofres cheios são para esvaziar ao primeiro espirro especulativo.

Boaventura Sousa Santos

Artigo de opinião na revista «Visão» disponível aqui.

1 comentário:

  1. Claro que a canalha mente sem vergonha e faz da mentira verdade e da verdade, lixo sem valor.

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