janeiro 31, 2011

Leitura da Laura para «Um mundo sem regras» de Amin Maalouf

A Laura escreveu dois textos (este e este) nos seus Jardins sobre o livro «Um mundo sem regras» de Amin Maalouf.
Deixo-vos aqui a leitura dela:

Para começar apresento-vos o seu autor: Amin Maalouf, nascido no Líbano em 1949, vive em Paris desde 1976. Repórter durante 12 anos, realizou missões em mais de 60 países. Antigo chefe de redacção do "Jeune Afrique", onde também foi editorialista. É autor de várias obras, entre elas a premiada «As Cruzadas vistas pelos Árabes» (Prix des Maisons de la Presse). Actualmente consagra a maior parte do seu tempo à pesquisa para os seus livros.
A certa altura deste livro, às páginas 180 ele diz o seguinte:

"«Valores» é uma palavra aviltada e versátil. Navega com facilidade entre o pecuniário e o espiritual e, no domínio das crenças, pode ser sinónimo de avanço ou de conformismo, de libertação moral ou de submissão. Devo também explicitar o sentido em que a utilizo e as convicções que ligo a ela. Não para reunir quem que seja ao meu estandarte - não possuo nenhum, mantenho-me a boa distância dos partidos, das facções, das capelas, nada é mais precioso aos meus olhos do que a independência de espírito, mas parece-me honesto, desde o momento em que se expõe a visão das coisas, dizer sem rodeios aquilo em que se acredita e a que se gostaria de chegar.
Do meu ponto de vista, sair 'por cima' do desregramento que afecta o mundo exige a adopção de uma escala de valores baseada no primado da cultura, direi mesmo baseado na salvação pela cultura.
Atribui-se geralmente a André Malraux uma frase que provavelmente ele nunca pronunciou, segundo a qual o século XXI 'será religioso ou não existirá'. Suponho que as últimas palavras, 'ou não existirá', significam que não poderemos orientar-nos no labirinto da vida moderna sem uma bússola espiritual.
Este século ainda é jovem, mas já se sabe que os homens poderão perder-se com a religião, como poderão perder-se sem ela.
Que se pode perder com a ausência do religioso, a sociedade soviética demonstrou-o amplamente. mas também se pode sofrer com a sua presença abusiva - já o sabíamos desde o tempo de Cícero, de Averróis, de Espinosa, de Voltaire - e, se o havíamos esquecido durante dois séculos, por causa dos excessos da Revolução Francesa, da Revolução Russa, do nazismo e de algumas outras tiranias laicas, muitos acontecimentos vieram recordar-nos disso desde então. Para nos levar, espero, a uma apreciação mais justa do lugar que a religião deveria ocupar nas nossas vidas.
Estaria tentado a dizer a mesma coisa do 'bezerro de ouro'. Vituperar contra a riqueza material, culpabilizar aqueles que se esforçam por aumentá-la, é uma atitude estéril que serviu constantemente de pretexto às piores demagogias. Mas fazer do dinheiro o critério de toda a respeitabilidade, a base de todo o poder, de toda a hierarquia, acaba por esfarrapar o tecido social."

Prossigo a minha análise destacando dele alguns trechos que, como este, ora dão pistas sobre 'caminhos' a seguir, ora me permitiram redescobrir pedaços da história humana recente e rever outros cuja exacta dimensão e consequências até aqui ignorava! Assim:

"(...) populações com múltiplas origens, que vivem lado a lado em todos os países, em todas as cidades, vão continuar a olhar-se entre si através de prismas deformantes – algumas ideias feitas, alguns preconceitos ancestrais, algumas fantasias simplistas? Parece-me que chegou o momento de modificar os nossos hábitos e as nossas prioridades para nos colocarmos seriamente à escuta do mundo onde estamos embarcados. Porque neste século já não há estrangeiros, já só há 'companheiros de viagem'. Quer os nossos contemporâneos habitem do outro lado da rua ou no outro lado da terra, estão a dois passos da nossa casa. Os nossos comportamentos têm efeito na sua carne, e os seus comportamentos têm efeito na nossa.
Se pretendemos preservar a paz civil nos nossos países, nas nossas cidades, nos nossos bairros e no conjunto do planeta, se desejamos que a diversidade humana se traduza por uma coexistência harmoniosa e não por tensões geradoras de violência, já não podemos permitir-nos conhecer 'os outros' de maneira aproximativa, superficial, grosseira. Temos necessidade de conhecê-los com subtileza, de perto, direi mesmo na sua intimidade. O que só pode fazer-se através da sua cultura. E em primeiro lugar através da sua literatura. É aí que ele revela as sua paixões, as suas aspirações, os seus sonhos, as suas frustrações, as suas crenças, a sua visão do mundo que o rodeia, a sua percepção de si mesmo e dos outros, inclusive de nós próprios. Porque ao falar dos 'outros' convém nunca perder de vista que nós próprios, quem quer que sejamos, onde quer que estejamos, somos também 'os outros' para todos os outros.
É claro que nenhum de nós tem a possibilidade de conhecer tudo o que gostaria ou deveria conhecer desses 'outros'. Há tantos povos, tantas culturas, tantas línguas, tantas tradições pictóricas, musicais, coreográficas, teatrais, artesanais, culinárias, etc. Mas se encorajássemos qualquer pessoa a apaixonar-se desde a infância e ao longo da vida por uma cultura diferente da sua, por uma língua livremente adoptada em função das suas afinidades pessoais – e se ela estudasse ainda mais intensamente do que o indispensável a língua inglesa – daí resultaria uma tessitura cultural densa que abrangeria todo o planeta, reconfortando as identidades temerosas, atenuando os ódios, reforçando pouco a pouco a crença na unidade da aventura humana e tornando possível, por esse facto, um sobressalto salutar.
Não vejo objectivo mais crucial neste século e é claro que, para termos os meios para o alcançar, devemos atribuir à cultura e ao ensino o lugar prioritário que lhe cabe.
Talvez tenhamos começado a sair, nos Estados Unidos e fora, de uma era sinistra onde era de bom tom cuspir na cultura e fazer da incultura um testemunho de autenticidade. Uma atitude populista que, paradoxalmente, se junta à do elitismo, na medida em que, tanto num caso como no outro, se aceita implicitamente a ideia segundo a qual a 'população' teria capacidades limitadas, que não conviria pedir-lhe demasiados esforços intelectuais, que bastaria fornecer-lhes caddies bem carregados, alguns slogans simplistas e diversões fáceis, para que fique piedosa, tranquila e reconhecida. E que a cultura deve ser o apanágio de uma ínfima minoria de iniciados.
Trata-se aqui de uma concepção desdenhosa e perigosa para a democracia. Porque não podemos ser totalmente cidadãos ou eleitores responsáveis se nos deixarmos manipular passivamente pelos propagandistas, se nos deixarmos inflamar ou acalmar segundo a vontade dos governantes, se nos deixarmos arrastar docilmente para aventuras guerreiras. Para poder decidir com conhecimento de causa, sobretudo nos países cujas orientações determinam em grande medida a sorte do planeta, um cidadão tem necessidade de conhecer em profundidade e com subtileza o mundo que o rodeia. Acomodar-se à ignorância é renegar a democracia, é reduzi-la a um simulacro.
Por todas estas razões e algumas outras, estou convencido de que a nossa escala de valores só pode basear-se hoje no primado da cultura e do ensino. E que o século XXI, para retomar a frase já citada, será salvo pela cultura ou então soçobrará.
(...) O combate para 'manter o mundo' será árduo, mas o 'dilúvio' não é uma fatalidade. O futuro não está escrito de antemão, é a nós que compete escrevê-lo, concebê-lo, construí-lo – com audácia, porque é preciso ousar romper com hábitos seculares; com generosidade, porque é preciso unir, tranquilizar, ouvir, incluir, partilhar; e, acima de tudo, com sensatez. É a tarefa que incumbe aos nossos contemporâneos, homens e mulheres de todas as origens, e eles não têm outra alternativa senão assumi-lo.
Quando um país está mergulhado no marasmo, pode sempre tentar-se emigrar; quando o planeta está ameaçado, não existe a opção de ir viver algures. Se não queremos resignarmo-nos à regressão, tanto para nós próprios como para as gerações vindouras, devemos tentar inflectir o rumo das coisas."

A ideia de que a resposta está na cultura e no ensino/educação dos povos parece-me não só justa como ao alcance de todos nós! E a primeira imagem que me veio à ideia foi a de trabalhos realizados pelos alunos da E.I.G. (Escola Internacional de Genebra, aquela que situada perto da O.N.U.) onde trabalhei durante algum tempo ainda recentemente, cujo tema se debruçava nas múltiplas e diferentes nacionalidades presentes na própria escola, realçando as características específicas a cada uma, como a sua língua, as suas tradições, etc., promovendo a troca de informação e de ideias, transformando assim aquilo que as distingue numa riqueza que mais não quer que ser partilhada, num património comum a toda a humanidade! Sim, porque aquilo que nos distingue não tem forçosamente que nos separar... antes nos deveria unir no respeito pelo direito à diferença! E vocês, o que acham?

16 comentários:

  1. Cara Laura - acho que tem TODA a razão. A humanidade "enche a boca" para falar de sociedades multiculturais, esquecendo que a mera coabitação nos traz muito pouco. Num mundo globalizado que se quer respeitador da(s) diferença(s), urge que se pratique o interculturalismo, pondo ao largo o medo que as culturas alheias enfraqueçam a nossa, porque só o farão se esta for tão fraquinha que não sobrevive a (boas) influências.
    Obrigada por me dar a conhecer ete autor e pela sua leitura!

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  2. Não sei se isso é viável. Intercultulularism... intermultural... ai, a porra... interculturalismo custa tanto a dizer...

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  3. O Nelo faria dessas propostas de palavras uma delícia, até aposto.
    Mas falando agora a sério ( e não à séria como agora se ouve) este texto mexeu bastante comigo. Nasci num ambiente multicultural onde se falavam correntemente cinco idiomas e mais uns dialectos tanto de origem africana como indonésia. Um facto curioso é a contaminação recíproca entre idiomas. Quando isto acontece é sinal de que existe uma convivência entre culturas. No entanto o cenário não era o da paz social como se pode julgar. No meu caso particular, sendo os meus pais portugueses, sentia uma certa discriminação. Os Portugueses são de facto muito laboriosos no "estrangeiro" e o seu sucesso nem sempre é bem aceite pelos que vivendo há várias gerações se consideram autóctenes. Da parte da colónia Holandesa, eram eles que se ostracisavam em relação a todas as outras culturas fechando-se em bairros de acesso limitado. A diferença de vencimentos consoante critérios étnicos também era gerador de tensões. A convivência entre culturas gera também preconceitos e todos sabemos do fenómeno da generalização: por um pagam todos.
    As ilhas Paradisíacas passam a se-lo muito menos quando vividas por dentro. Mas não é preciso ir às minhas ilhas. O grave problema social que se vive em França com as segundas e terceiras gerações de origem Magrebina atesta bem o atrás referido. As retribuições auferidas com base em critérios de origem e uma oferta de empregos desqualificados são desmotivadores para os que nascido em solo Francês se sentem com todos os direitos de cidadania e merecedor das mesmas oportunidades. Podemos dizer de certa forma, que o sucesso para a convivência entre culturas passa por um sentimento global de justiça social e isso é algo que tem de ser também vivido por dentro.

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  4. Oh porra, eu digo "à séria". Não sei se por vício idomático-cultural, mas digo. E não creio que esteja errado: à [maneira] séria. Estará?! :S

    Também não sei, São, se o interculturalismo será viável. Para já, tudo aponta para que não. Mas que seria desejável, seria. Digo eu, claro... :)

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  5. À séria? É uma bela de uma utopia. Mas se fizermos algo, cada um de nós, pode ser que um dia deixe de ser uma utopia.

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  6. AnAndrade,
    Ao final de apenas algumas páginas senti logo uma enorme vontade de partilhar este livro e o seu autor. Além disso fazê-lo tem-me dado imenso prazer, por isso não tem que agradecer!!

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  7. Charlie,
    Este seu comentário encheu-me as medidas! Ao mesmo tempo que levanta questões pertinentes encerra em si mesmo a resposta quando conclui:
    "Podemos dizer de certa forma, que o sucesso para a convivência entre culturas passa por um sentimento global de justiça social e isso é algo que tem de ser também vivido por dentro."
    É exactamente isto que penso! Moro mesmo aqui ao lado de França, convivo de bem perto com a sua população e tanto o que constato como aquilo que diariamente ouço
    ouço nos seus Media (TV e Jornais)
    leva-me a concluir que o seu clima social (há bem pouco tempo bem "explosivo") tem origem na crise económica e financeira que o país atravessa! Já algum intelectual terá dito: O factor económico determina em última instância o factor social que trocado em miúdos pelo Zé Povinho dá isto: "Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão"!

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  8. Desde que me lembro, os franceses sempre foram muito refilões :O)

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  9. Olá Laura ;)
    Mora mesmo ao lado de França?
    E eu que julgava-a mais próxima.
    Mas também, a Net faz do mundo uma aldeia global e estamos todos a morar mesmo ao virar da esquina, quer seja junto ao Tasco do Zé, ou no Largo da Igreja.
    Ja agora, mora em que país?

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  10. Olá Ana :)
    Desculpa não ter respondido mas ando todo F$#2»@%& com uma gripe dessas que fazem os ossinhos da gente ficarem crepitantes estaladiços e mais não digo.
    Como sabes sou de naturalidade estrangeira e longe de me armar em mestre o que gosto mesmo é de aprender este idioma rico e complexo.
    No seguimento disso gostaria que passasses um olhar de soslaio por estes links e que depois comentasses
    http://doc.jurispro.net/articles.php?lng=pt&pg=17010

    http://www.ciberduvidas.com/pelourinho.php?rid=1246

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  11. @Laura;

    Imperdoável não ter ido espiolhar o perfil, mas pronto: declaro-me: sou uma besta e não digo mainada.
    Laura:
    Local: Genève : Suisse Romande : Suíça
    Os meus respeitos a V. Exa. :D

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  12. Charlie,

    Deixemo-nos de m%&°#*s qu'aqui o Je tb é lerda quanto baste! Além disso, e tal como disse, a Net fez deste mundo uma aldeia global... e ainda bem porque foi uma ajuda preciosa para os Tunisinos que se organizaram e organizaram manifestações através dela... e depois é tão fixe a sensação de proximidade!! Os Kms que nos separam são cada vez menos importantes!! Foi um prazer conhecê-lo e até mais logo vizinho! ;)

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  13. Leitura muito interessante, sim senhores. Dito isto, sublinhar o acesso universal à cultura, através da informação e do ensino, como plataformas geradoras de «mecanismos de entendimento».

    A religião - as religiões -, por outro lado, não têm tido nada a ver com a espiritualidade. Bem pelo contrário, revelam-se máquinas de dominação dos espíritos e condicionantes do livre pensamento, sempre muito aproveitáveis por quem domina... para dominar melhor e mais facilmente. Não deixa de ser curioso observar a ausência de pendor religioso nesta vaga de revolta que assola o norte de África...

    Geneticamente, o homem é um. O «outro» mais não é do que um espelho de si próprio. Claro, sujeito à qualidade da confecção do vidro e da qualidade da luz, se me permitirem a pobreza da metáfora.

    Mas, depois, visto com mais atenção, descobre-se que, muito mais do que um reflexo, esse «outro» é igualzinho a nós, tem, no fundo, os mesmos anseios, ainda que pense atingi-los por caminhos diversos dos nossos - a tal cultura...

    E essa descoberta é que nos engrandece e faz assumir a nossa consciência humana. Não dizia já o José Gomes Ferreira (ainda antes de Amim Maalouf)que «penso nos outros, logo existo»?

    Talvez por isso se diga também que a poesia, muito mais do que um mero exercício de dores de peito, é «uma arma carregada de futuro»...

    Mas, sim, aí está um texto motivador de grande agitação dos neurónios - que é uma coisa que nos faz tanta falta!

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  14. «penso nos outros, logo existo»...

    Grande frase!

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