fevereiro 05, 2011

As privatizações ou como ter mais laranjas se der a laranjeira que é minha ao vizinho

Nos tempos de crise económica é da praxe o desfilar das receitas, que de tanto serem veiculadas e propagandeadas, passam a ser aceites como incontornáveis para a solução de aflição em que as contas se encontram. A estratégia inscreve-se na já conhecida e metafórica estorinha da rã que acaba por ferver ao aconchegar-se na água ao lume que de morna fica cada vez mais quente. Neste contexto, as famigeradas privatizações são a linha da frente que os gurus-emprestadores-de-dinheiro apresentam entre as medidas indispensáveis e sem as quais os países não conseguem sair das crises.
É sempre saudável, sob o ponto de vista de observador, reduzir o tamanho dos fenómenos ao nivel do seu entendimento imediato. Mesmo um grande engenheiro apenas consegue ver a globalidade dum mega-projecto se o reduzir a uma maquete sobre a secretária.
Peguemos então numa crise e reduzamos um país ao tamanho duma casa com um quintal que produz laranjas das quais nos alimentamos. As que nos sobram trocamos por outras coisas e o mundo é o melhor dos mundos salvo se um dia quisermos mais coisas e as laranjas não chegarem. Aí podemos esperar e guardar laranjas para uma próxima vez ou negociar um adiantamento e levar as coisas de imediato. Esta facilidade, o crédito, sem a qual nenhuma economia moderna funcionaria, é um mecanismo poderoso, mas tremendamente perverso.
É clássica a estória dos colonizadores estabelecidos nos entrepostos comerciais em África. Mal viam os nativos chegar com os grandes sacos de mancarra (amendoim) que vinham vender, os quais tinham estado a encher todo o dia, punham logo umas garrafas de aguardente em cima do balcão, uns sacos de arroz e peixe seco, de feijão e uma barra de sabão, e mais umas de aguardente ao lado duns maços de tabaco e fósforos.
Ainda o desgraçado não tinha posto o primeiro saco em cima da balança, já o livro das contas estava sobre o balcão e o avio apontado. No fim das operações de pesagem o diálogo era um disco já gravado:

“ X em amendoim e como levas agora isto que é Y, e tinhas ficado a dever da outra vez Z, ficas devendo T...., mas repara que já deves mais agora do que há uma semana”
“Mas ...eu, eu preciso de algum dinheiro....”
Precisas de dinheiro? Então não levas aí tudo o que te faz falta? Queres o dinheiro para quê? Mas pronto, vejo pela tua cara que queres fazer um extra. Toma lá cem escudos, mas não te esqueças. Fica aqui apontado e repito: não te esqueças de que já estás a dever mais. Daqui a uma semana quero mais mancarra. Vá....


Esta simplicidade ingénua da qual o comerciante se aproveita, faz-nos sorrir. Nós que não cairíamos nessas esparrelas tontas. Em primeiro lugar, o nativo não tinha pedido nada, nem era obrigado a aceitar coisa alguma previamente colocada em cima do balcão. Apenas iria pesar os amendoins e receber o valor em dinheiro. Com esse dinheiro na sua posse iria geri-lo da forma que entendesse...
No entanto esta ingenuidade alheia e que nos faz sorrir condescendentemente, é exactamente a mesma que demonstramos durante estes últimos anos em que as nossas casas foram invadidas de cheques pré aprovados emitidos pelos bancos, de cartões de crédito não solicitados, de prémios de adesão fantásticos para viagens viaje-agora-pague-depois, de colecções de toda a sorte, de pratas assinadas e electrodomésticos-a-preço-da-chuva-a-duas-mancarras-por-dia. Não que nos fizessem falta, ou melhor, tanta falta. Na minha área vi tanto bom equipamento deitado fora e trocado por um novo de melhor aspecto, mas de desempenho e durabilidades questionáveis e que fizeram jus à minha desconfiança, estando já-há-que-tempos nos ecopontos e substituidos por outros igualzinhos em história de vida previsível.
Mas regressemos ao nosso cantinho, a nossa casinha que o nosso vizinho assediou de prospectos publicitários.
Agora temo-la cheia de cangalhos.
Já nem queríamos tanta coisa, mas como o vizinho dizia que não havia problema que logo pagaríamos com laranjas, as coisas lá foram chegando.
Há umas semanas contudo, a situação mudou.
Ele quer mais laranjas, precisa mesmo de mais, exige mais.
Diz que é coisa de juros. Do tempo que tem que esperar e que lhe traz prejuízos...
No entanto, estamos a dar-lhe muitas mais laranjas, tantas que já não provamos o gosto delas há que tempos.
Hoje as coisas pioraram, ele quer ainda mais sob pena de cortar o fornecimento das coisas que nos são essenciais.
- Não deveriam ter comprado tanto, senhores...-, diz ele agora, de ar compreensivo, cinicamente paternalista enquanto nós já não sabemos o que fazer à vidinha.
Finalmente, e após uns dias complicados, apresenta uma solução:
- Entrega-me essas laranjeiras e fica a dívida saldada, e ainda lhe dou vinte e cinco quilos por semana.
E nós, o que fazemos? Entregamos as laranjeiras em troca de vinte e cinco quilos de laranjas por semana? E então as outras coisas de que precisamos? Como vamos ter receitas para trocar por pão e água?
- Não há problema, vizinho: por vinte e quatro quilos de laranjas, tem o pão e a água de que precisa para comer e tratar das minhas laranjeiras, e ainda lhe deixo um quilinho para os seus gastos....

charlie

19 comentários:

  1. Nomeio-te mestre honorário em Economia!

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  2. Charlie,
    Boa metáfora! É mais ou menos o que se passa quando os países pobres, ditos do Sul, endividados até aos cabelos tentam vender, por exemplo, os seus produtos agrícolas cujo preços são regulados (ou melhor ditados) por mecanismos sob o control dos países ricos (OMC) que, claro, os desvalorizam quanto baste para sempre comprarem barato o que precisam de forma a que o "garrote" da dívida nunca deixe de os apertar e assim se mantenham numa posição de fragilidade e sobretudo sem grande capacidade de negociação!
    Conclusão a dívida desses países não para de crescer, a sua capacidade de libertação não para de diminuir e aqueles que a provocam ainda nos conseguem fazer pensar nesses países e seus povos como um peso que muito toleramos e a quem não paramos, na nossa imensa magnanimidade, de ajudar (FMI)injectando-lhes de tempos a tempos a "vitamina" apenas necessária a de novo se porem pé! E tudo recomeça... vampiresco não?!

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  3. Olá Laurinha e Paulo.
    heheheh, mestre honiris cáustica eheheh.
    Não é caso para tamanha despesa, mas como diz a Laurinha, de facto, e fazendo retrospectiva em relação ao que aconteceu ao mundo, chego a pensar que foi de facto uma estratégia dos que querem dominar, (e dominam de facto) esta bola. Esses que ninguém conhece mas que tem o Poder de facto, outra coisa não fizerem durante anos a fio que não fosse pôr garrafas de aguardente em frente aos nossos olhos, para que no fim desta bebedeira contínua ficássemos sob o seu total domínio.
    É vampiresco, trágico e incompreensível.

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  4. Mas a solução - parece-me - depende de nós.

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  5. Ena! Ena! Pelos vistos consegui dizer uma coisa acertada :O)

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  6. A solução---
    Não há soluções milagrosas como todos ja sabemos. Resolver implica escolha e a escolha quer dizer antes de mais preterir. Ou seja, perante um quadro de opções, excluímos umas perante outras. E é aqui neste campo que se pode interrogar, equacionar e comparar. Porque é que perante o sucesso do Brasil do Lula, apenas nos põem diante dos olhos a mesma receita que tinha levado o Brasil à eterna crise em que vivia? Porque é que os doutos opinion makers, economistas e políticos, passam o tempo a mostrar-nos o precipício como única saída para evitar a queda? Lula fez exactamente o contrário destas receitas que nos afogam. Inverteu ao sentido das privatizações das grandes empresas, nacionalizando-as e baixou os impostos, e bastou isto para criar de imediato o efeito multiplicador que fez o chamado milagre brasileiro despontar.
    Em Portugal, se bem nos lembramos, a receita tem sido há anos a de privatizar. Para resolver a crise, dizem. A verdade é que só os Bancos davam ao Estado uma quantidade de milhões em receitas. O que se segue é óbvio: o Estado deixa de contar com uma receita permanente, e onde vai busca-lo? Ao aumento de impostos. Cada vez que privatizam, o que era de todos passa a ser só de uns, e a despesa de todos que esse bem cobria passa a ser pago coercivamente por todos, retirando de circulação o dinheiro necessário ao funcionamento da economia.

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  7. Qual mestre, qual quê? Nomeio-te doutor honorário em Economia!

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  8. Pois, pois...
    É tudo pró Xarle e pra mim népiash e açim....:(

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  9. Também queres começar a publicar coisas aqui, Nelo?
    Çería huma ótima [o acordo ortográfico é como tu] e dei-a.

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  10. Eu também voto no doutoramento do Charlie e, já agora, suma cum laude, que é assim a modos que um doutoramento com sumo e tudo...

    E a chatice maior do que fica excelente e claramente dito é que tudo isto já nem é uma metáfora, senão a realidade.

    Em tempos, no esgadanho das soluções da treta para combater a crise da treta, eu propunha que todos nós plantássemos uma couvinha...

    Ora, o Charlie eleva bem a parada e dá-lhe com uma laranjeira, que é produtivamente muito mais promissora!

    Soluções? Pois, lamenta-se muito mas isto já só vai à porrada, falando nua e cruamente. E depois... nunca se sabe onde a coisa vai parar.

    A minha sincera vénia, mestre Charlie. Grandíssima esgalhadela. Envia-a ao Medina Carreira, que ele ainda vai a tempo de aprender alguma coisa...

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  11. aahhahha
    Obrigadinho Grande Meste Orca
    E eu assim de repente no meio de Mestres do teu gabarito, sinto o conforto da minha aprendizagem ir no sentido crescimento. Um forte abraço, Mestre Orca e mais uma vez obrigado.
    Quanto isto ir à porrada, relembro o grande mester pé-descalço Aleixo.

    " vós que lá do vosso império prometeis um mundo novo
    calai-vos, que pode o povo
    qu'rer um mundo novo a sério"

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  12. Pois e quanto ao Medina que agora alguns sectores acham ser o máximo, relembro quando ele há dois anos defendia a ideia peregrina de colocar todo o dinheiro que a UE enviava para Portugal naqueles investimentos de alto rendimento, os tais que agora mudaram de sexo e passaram a ser tóxicos.
    Depois duma enormidade destas e do que aconteceu aos bancos e demais empresas e instituições que investiram nessa treta, não sei como há ainda uma só pessoa que pode levar o Medina a sério...

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  13. Charlie, não querendo ser advogado de defesa do Medina Carreira... se tu puseres uma cruz em todos os economistas, banqueiros, governantes e jornalistas de economia que até há 3 anos defendiam os mercados especulativos, vais ter que pôr engenheiros em quase tudo o que é sítio...

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  14. Eheheh... O Medina até tem laracha e desempenha um papel. Não há dúvidas, também, que foi dos primeiros a gritar que o Sócrates ia nu... e que isso não era uma boa ou agradável visão.

    Mas também estou com o Paulo, quanto a essa treta da conversa da treta, como costumo dizer, da parte de tudo quanto é «artista» pseudo-comunicativo.

    Não sei, até, se algum estará livre de mancha... Agora, a lembrança do Charlie é oportuna. A nossa memória é curta e já não sei se é da idade ou se do excesso de informação... da treta.

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  15. Já na tropa se aprendia: "notícia não é informação". E diziam-nos como fazer para transformar rumores em "verdades".
    Esta malta deve ter feito toda a tropa no mesmo quartel...

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