setembro 05, 2011

O meu problema com as saudades

Em 2007, já lá vão quase quatro anos, escrevi, num curto parágrafo, o que penso sobre elas.
Hoje, tive de lhes voltar.
O povo português reivindica a saudade como uma coisa muito idiomaticamente sua, com peito inchado: trata-se de um conceito sem tradução imediata noutros idiomas e isso, pelos vistos, deveria encher-me, também a mim, de orgulho. Mas não enche. A encher, só de indignação e, vá, de nervoso miudinho.

Vamos por partes e recorramos ao meu caro amigo Houaiss (sempre ao meu lado, nos seus sete volumes), por forma a que saibamos de que estamos a falar ("primeiro, conceptualize-se!", digo eu sempre aos meus alunos):
saudade (s.f.) - sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória  a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de determinadas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável. (...)

Ora pronto, cá está.
Choco, desde logo, com a "melancolia", que é um estado de espírito que não se me assoma (ia escrever "que não me assiste" mas já chega de dar protagonismo ao senhor que de uma queda de skate passou a protagonista de um anúncio da Meo!) e que gosto de manter a uma saudável distância, se ele não se importar.

Depois, a incompletude. Confere: por vezes sentimo-nos incompletos, que ninguém o negue. Nem que seja de uma sandocha, ainda que ninguém, no seu perfeito juízo, e salvo se estiver a seguir uma dieta rigorosíssima, possa afirmar ter saudades de uma sandocha. Porquê? Porque é só ir ao frigorífico/bar/café/área de serviço mais próxima e tratar do assunto. Claro que há quem não tenha sequer dinheiro para comer sandochas quando lhe apetece, mas dificilmente se falaria em saudades, neste caso.
Se temos saudades de ir ao cinema, ao teatro, de jantar no restaurante X ou de ver as vistas do sítio Y, vá-se, que diabo!, de outro modo é masoquismo e vontade de estar sempre a falar no mesmo.

(Mais uma vez, exceptuo-me aqui a referir os que, por algum motivo de saúde ou de ordem financeira não podem fazer o que lhes dá na real gana, mesmo porque não é a esses que me reporto, mas tão só aos que acham que as saudades têm as costas tão largas que lá cabe tudo o que a sua inércia não quer solucionar)

E se for saudades de uma pessoa, já me fará menos urticária?!
Hmmm... de todo e muito pelo contrário. Só temos o direito de ter saudades (ou de sentir a falta, dizem os outros povos e muito bem) das pessoas que morreram (odeio o verbo "falecer", temos pena), porque essas não voltam. Aí sim, o peito que se aperte, a memória que se reavive e que as traga para junto de nós nas muitas recordações que temos delas (se não temos, não há do que sentir falta), as lágrimas que se soltem. É estúpido, porque não resolve nada, mas alivia, o que não é de somenos.
Agora... ter saudades de pessoas vivas? Com quem falamos ao telefone e no Facebook e no Skype (vivam as novas tecnologias!) e que podemos rever mal nos dispunhamos a isso? Não me lixem, que eu hoje não estou boa.
É evidente que se pode afirmar, com segurança, e que atire a primeira pedra quem nunca o fez, que todos já dissemos a outrem ter saudades suas, só como quem diz "gosto muito de ti e um dia destes vêmo-nos e vai ser giro". Mas não é de saudade strictu sensu que se trata, porque se fosse, o que se diria é "tenho saudades tuas e vou já ter contigo". Mas isso raramente se faz. Porque dá trabalho, porque temos de alterar planos ou de tirar o rabo do sofá ou de mudar a nossa rotinazinha segura e chata. Vai saí, adiamos o encontro até haver necessidade de chamar as saudades à conversa ainda outra vez, e lá se protela o reencontro (tããããão desejado, já se sabe) por mais uns dias/semanas/meses.

O que é que eu acho da saudade? Mas da saudade mesmo, daquela que aperta o peito e que nos faz sentir de facto incompletos e nos tira a fome (pelo menos aos que sofrem desse mal) e nos deixa macambúzios? Acho que só pode ser um estado transitório. Que se ultrapassa mal se queira.
O resto é encher chouriços, meus amigos. Porque a saudade do passado pede futuro, e é provavelmente porque, nos nossos brandos costumes, preferimos as palavras aos actos, que ficamos num presente que não existe (porque está constantemente a virar passado), presos a ideias e esquecendo que estas não são nada sem concretizações.

Por isso, doravante, e salvo se tiverem planos para estar comigo tão cedo quanto a vontade quiser, não me digam que têm saudades minhas. É que é justamente nestas ocasiões que eu perco a tramontana e não só rosno como chego a morder.

8 comentários:

  1. "Encher chouriços" é coisa que, conceptualizando, me agrada :O)

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  2. Se por muito querer se fizesse, as saudades não doíam nem apertavam o peito. É quando não se pode fazer o que muito se quer, que custa suportá-las.
    Faca de dois gumes (ou pau de dois bicos), bom senti-las mas depois há uma pressa que nos "assiste" para lhes ver o fim... e melhor é quando se matam.

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  3. O que sinto mais próximo de saudades é quando regresso de uma viagem e dou um valor extraordinário àquelas coisinhas simples do dia-a-dia das quais estive afastado.
    Mas, enquanto estou fora, aproveito ao máximo tudo o que há de positivo.
    Dos meus parentes e amigos que morreram, não sinto saudades. Gosto é de relembrar tudo o que houve de positivo na minha vivência com eles. Sem melancolia.

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  4. Será adequado aqui comentar: béu-béu ou ão-ão, consoante a dimensão autodefinida?

    Pois também acho que a saudade é muito afadistada. Mas podemos reconhecer-lhe algum pendor poético, se tratada com desassombro, mas sempre articulada com o «gostava tanto, mas não posso» e sendo que este «não posso» se articula, por sua vez, com factores que não estão, de todo, na nossa mão...

    Mas convém que o que de melhor tem a saudade é mesmo o matá-la! E talvez isso a redima... ;-)»

    Beijos, Ana.

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  5. Lembrar, sempre.
    E é justamente isso, o lado afadistado da saudade, que me bule com os nervos! :)

    Beijos também!

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  6. Bule porque não tens falta de chá.

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  7. Gostei de ler-te e seguir as linhas dos teus pensamentos e a forte carga emotiva,- mas não por isso menos racional- de que eles se envolvem. Não posso é de deixar expresso um reparo quando te referes ao facto de não quereres ser lixado pois tu- à ocasião e nesse dia-, não estarias estado supostamente boa!!!
    Permite-me que discorde frontalmente dessa afirmação e com a veemencia que o momento exige e deixar para todo o sempre expresso de que v. exa é -pelo contrário-, boa todos os dias pares e impares. Fica um ressalva para os anos bissextos especiais em que o mês de fevereiro se vê acrescido de mais três dias.
    Será então v.exa nesses dias não boa, mas assim assim, para continuar toda boa o resto do ano...e sem saudades....

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