setembro 01, 2011

Nem tudo o que luz é oiro...


Pronto! Depois de muito batalhar a ouvir o que um Miguel Gonçalves disse no programa Prós e Contras e que circula por aí como exemplo de nova militância obreira, acabei de concluir que o rapaz, embora possa até estar imbuído das melhores intenções, não passa, objectivamente, de assumir o papel de vendedor da banha da cobra dos tempos modernos.

E por variadíssima ordem de razões. Desde logo porque parte, sem medo, de uma série de pressupostos que, por muito má sorte nossa, não existem.

Não existe isso de tentar uma solução de vida uma vez e outra e mais outra e outra ainda, sem que todos os dias, enquanto se vai tentando, haja necessidade de comer - o que, por si só, condiciona a abordagem ao «mercado».

Não existe isso de «oferecer a mais-valia que o empresário procura» na traineira que sai para a pesca, pelo menos na perspectiva modernaça que o jovem Miguel lhe quer atribuir, sob pena do jovem em início de laboração na pesca ser lançado borda fora, no máximo, ao segundo dia, pelo mestre.

Não existe isso da criatividade exacerbada e sempre à frente quando se trata de fazer uma recolha diária de lixo municipal ou providenciar a limpeza de dejectos de cão na via pública.

Não existe também essa capacidade de perseverança quando a vergonha e/ou a penúria em casa obrigam um jovem licenciado a inscrever-se como caixa do supermercado, como forma liminar de prover ao sustento do dia-a-dia.

Exemplos disto seriam intermináveis e enfadonhos. Direi, apenas, que o jovem está a falar como um empresário a tratar de um assunto com outro empresário. Um que vende e o outro que compra para revender.

Não está a falar como um dito assalariado, alinhando o jovem Miguel também na conversa fiada ou na quimera – como quiserem - de que isso foi coisa que passou à história – o que é mais banha da cobra - e daqui para a frente somos todos empresários, sendo este, porventura, o maior embuste laboral a que se recorre para escravizar os novos chegados ao mercado de trabalho.

Querem fazer passar, como parece ressaltar do entusiasmo deste «criativo» e destes pretensos iluminados a presunção de que tudo pode evoluir em «outsourcing» - leia-se recurso a empresas externas. E é verdade, mas apenas na vertente do aumento exponencial de lucros, que não no aumento de qualidade do produto vendido, seja ele qual for, desde a energia eléctrica à tal recolha de dejectos de cão. Tampouco no fino acabamento do produto produzido, por ausência de conhecimento e/ou cultura de empresa necessários para tal efeito.

E não, também seguramente, no estabelecimento de um sedimento social onde a palavra futuro possa ter algum sentido.

Porque os «outsourcings» têm de ter, para funcionarem, os tais assalariados que, de «outsourcing» em «outsourcing», a única coisa que têm de certo é nem saberem, afinal, quem é a entidade empregadora, nem com ela estabelecerem vínculos de qualquer ordem – o que é tão conveniente para o tal crescimento exponencial de lucros.

No entanto, interessa saber que este não é um circuito fechado. Nada disso. Tudo isto se passa porque a fusão dos interesses privados com os poderes públicos (ou, melhor e mais correctamente dizendo, a relação de dominação estabelecida, com a mais descarada subserviência a esses interesses por parte dos «governantes») permitiu que o mercado de trabalho se fosse inquinando; que as relações laborais, regidas por legislação e com tribunais específicos, fossem caindo na mais abjecta anarquia onde, necessariamente, manda só quem tem poder e tem esse poder porque tem o dinheiro com que compra as consciências dos seus apaniguados. É a mais descarada lei da selva a que se assiste desde o advento da chamada Revolução Industrial – ainda que seja uma selva urbana.

No fundo e resumindo, tudo isto se passa porque o(s) governo(s) – nacionais e estrangeiros, pois que este crime não tem fronteiras – permite e, até, acarinha, quando não é o próprio mentor, da mais abjecta e ilegal desregulamentação do mercado do trabalho, onde só existem exigências e regras para os empregados, mas nunca para os empregadores, pelo menos para aqueles que constituem o núcleo coeso da pandilha, já que o sistema não lida bem com os marginais, seja qual for a sua categoria ou inserção no mundo produtivo.

Por outro lado, a conversa reiterada das más ou deficientes qualificações dos assalariados portugueses que sempre serviu de argumento para os salários de vergonha por cá praticados, em comparação com os demais países da Europa, onde consta que estamos integrados, desencadeou a obsessão pelos cursos ditos superiores, tendo realizado esse grande feito de termos passado de um país com cerca de 50% de analfabetismo para a proliferação da oferta de cursos superiores – que se contavam, ainda há pouco, por larguíssimas centenas.

E para quê? Ora, em termos muito genéricos e não esquecendo, obviamente, as bolsas de excelência – que, aliás, sempre existiram – resultou tudo isto numa profusão de doutores e engenheiros que não têm onde cair mortos nem vivos, e que são a carne para canhão preferencial para os Belmiros e Amorins aos quais, afinal, sempre dá jeito terem assalariados, mas a quem não dá jeito nenhum, tendo-os, cumprir com eles a legislação laboral existente.

Claro que nesta «lógica concorrencial» da globalização vista pelo prisma dos interesses privados, para que servem as estações de correio nas santas terrinhas? E as maternidades onde só vai parir quem não viva à beira-mar? E o balcãozinho local para fazer o contratozinho de electricidade? E mais isto e mais aquilo que pode conferir alma à interioridade de um país? Não servem para nada a não ser para estorvar, tal como os pobres diabos que por lá vivem e que se esgadanham para dar uma identidade a um país.

Mas o assalariado continua a fazer falta. Só que agora estará numa qualquer sub-cave, com mais dez ou vinte ou quarenta e cinco iguais a ele, a debitarem para um telefone a conversa da treta impessoal com que somos brindados quando tropeçamos com algum engulho nas nossas relações contratuais com tudo o que é empresa de serviços e outras.

E a serem pagos ainda mais miseravelmente do que os pais deles já o foram, com o pequeníssimo e irrelevante senão de que nem protecção laboral têm. Eles que, irremediável e inquestionavelmente, são o patamar mais baixo de uma pirâmide social cada vez com menos escalões intermédios.  

Este Miguel, expedito e fura-vidas – o que nem todos somos, apesar de poder cada um revelar-se, ainda assim, excelente profissional – crê e cai nesse erro absurdo que todos podem ser moldáveis ao padrão que ele defende ou pratica, quais produtos de linha de montagem humana, de que Orwell nos fala e para onde a realidade hodierna nos quer conduzir.

Pelo caminho e quando menos todos os seguidores ingénuos destas mezinhas liberais o esperarem ficará exactamente aquilo que ele alega promover: a criatividade, a diversidade, a riqueza do confronto de ideias e até de atitudes.

Este Miguel é o produto acabado dos conceitos mais refinados da fase actual do capitalismo que tanto artista da nossa praça tenta incutir e defender a martelo com a globalização em riste e a competição contra tudo e contra todos à ilharga, de que alguns colhem benefício contra o interesse de tantos.

Será um sobrevivente, este nosso Miguel, mas apenas até que o «mercado» se sinta farto dele e, então, não será mais do que o produto descartável em que ele próprio se arvorou.

E, se tiver de tratar da próstata aos 66 anos, ou amealhou gordo pecúlio à custa da pobreza de muitos, ou vai ter de viver com a próstata que tiver, pois não haverá estado social que lha ampare.

9 comentários:

  1. Já te disse que adoro os teus contraditórios?

    ResponderEliminar
  2. É contradictório, mas não se contra dixit :)

    ResponderEliminar
  3. E como diz o ORCA, se todos fôssemos Miguéis, o que seriam os Antónios.
    Ou seja, de papagaios estamos já enjoados, embora tenha alguma saudade de ouvir os vendedores de feiras com altifalantes em corneta a gritar de microfone embrulhado num lenço- já castanho de tanto azul que eles eram quando foram postos na missão de embrulho: - Ora fregueses, eu hoje estou doido, passei-me!!! - ( neste ponto a mulher, perfeita partenaire abanava a cabeça e dizia: - Ai home, tu nã nos desgraces, vê lá o que fazes, homém...)
    O voxeador indiferente continuava no entanto como se nada tivesse ouvido: -Ai fregueses, eu hoje tou doido: É para a desgraça, é para a desgraça!!!: Vejam bem, venham fregueses, venham ver: esta linda colcha, que dantes custava cinco mil escudos, sai hoje por conto conto e quinhentos. E mais! De oferta leva este faqueiro, imitação de prata e mais um saco de peúgas! E para o primeiro que avançar, leva; não uma mas duas colchas, e mais um faqueiro e mais um saco de peúgas ....-
    Nesta altura já a mulher deitava, ora à cabeça ora aos maços já preparados para os primeiros encantados pela flauta mágica do marido, e que ela trocava por outro maço....das notas ardendo no bolso dos visitantes...
    De alguma forma o Miguel terá colmatado um pouco a minha nostalgia destes vendedores, que desde colchas, almofadas e banhas da cobra, tudo tratavam pela mesma bitola do saber bem vender....

    ResponderEliminar
  4. Na minha terra havia um desses especialistas: o Varandas.

    ResponderEliminar
  5. Mesmo a calhar:
    Conferência de Satish Kumar, no âmbito do ciclo "Ambiente. Porquê Ler os Clássicos?" está a decorrer agora, sigam o link abaixo

    Fundação Calouste Gulbenkian - Colóquios / Conferências

    http://live.fccn.pt/fcg/

    ResponderEliminar
  6. Ora bolas... parece-me que já não cheguei a tempo...

    ResponderEliminar
  7. pus no meu mural do facebook, podes lá ir ver.

    ResponderEliminar