Custa sempre a aceitar que mesmo o que entendemos por bom, por positivo, naquilo que nos faz enquanto gente possui limites e deve ser usufruído com prudência e com moderação. Coisas que dependem muito da forma como as sentem e interpretam os outros, as pessoas com quem interagimos e por isso acabam destinatárias das características que nos definem e dos comportamentos que esses traços de carácter acabam por condicionar.
A sinceridade, louvada como um valor universal, mais do que uma característica inata é uma opção individual que todos gerimos em função da importância que lhe atribuímos mas também das características das pessoas a quem a dedicamos e até das circunstâncias com que nos vemos confrontados quando chega a hora de ponderar esse recurso ao nosso dispor para, bem vistas as coisas, justificarmos laços de proximidade e de confiança com quem lidamos ao longo de uma existência que prefiramos alheia à solidão.
Nenhuma pessoa pode afirmar-se absolutamente sincera, pois o bom senso recomenda e a sensibilidade exige uma gestão cuidada, um doseamento sensato da verdade em estado puro para com os outros e até para com nós mesmos, sob pena de se obterem reacções que se entendem como inesperadas apenas aos olhos de quem não possua o discernimento necessário para respeitar os tais limites e para medir as consequências por vezes devastadoras de uma postura demasiado frontal.
Demasiado. Um termo que soa desajustado quando olhamos para a verdade despida de todos os condicionalismos, de todos os factores endógenos ou exógenos que podem transfigurar esse conceito aparentemente cristalino e de uma bondade intrínseca, transformando-o numa arma de arremesso que pode destruir uma relação sólida ou uma pessoa fragilizada na sua estrutura emocional.
Complicado. Outra palavra que parece desenquadrada da definição de sinceridade, sem dúvida, mas que se torna incontornável quando da teoria sempre tão benévola passamos à dura realidade da respectiva aplicação.
A sinceridade, porquanto louvável, jamais poderá ser absoluta fora do âmbito do monólogo ou da introspecção. E mesmo aí requer alguma contenção, tão frágeis se revelam as nossas defesas às verdades mais perturbadoras, ao ponto de um raciocínio sincero se poder transformar num complexo exercício de negação. Depende apenas do calibre do próprio, do poder de encaixe que todos reclamamos mas nem sempre se mostra à altura da situação. Quando está em causa o arcaboiço dos outros este detalhe assume proporções ainda mais relevantes e é quase instintivo o recuo, o adornar da verdade perigosa com uma inócua mentira piedosa ou com uma estratégica omissão, parcial ou total, dos pormenores mais ameaçadores.
Jogamos à defesa e hipotecamos sem hesitar esse valor alegadamente tão grato apenas porque percebemos (ou aprendemos à bruta) que tem mesmo que ser. Não faltam atenuantes bem intencionadas para justificarmos o perigoso resvalar para uma hipocrisia bondosa que o medo nos induz.
Quase sem darmos por isso abdicamos com tanta frequência da sinceridade digna desse nome que nos habituamos a contornar as verdades incómodas e depois de aberto o precedente, de quebrada a espinha dorsal do conceito original, perdemos a capacidade de distinção da verdade na sua essência e acabamos por encaixar a mentira na rotina da nossa interacção.
Acabamos encurralados pelo inferno de uma lógica traiçoeira nas nossas melhores intenções.
Isto devia ser de leitura obrigatória em todas as escolas, empresas e igrejas.
ResponderEliminarClap, clap, clap.
ResponderEliminar(o Ricardo Araújo Pereira escreveu na mesma linha, aqui há um par de anos - num outro registo, mas no mesmo sentido - e concordo inteiramente com ambos)
Muito bom.
Agradeço-vos tanta gentileza, bela dupla de apreciadores.
ResponderEliminar"Bela dupla"?! O Paulo apanha isso da Ana, por osmose?
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