Tenho para mim que o "estado a que isto chegou" se deve, em larga medida, à forte raiz judaico-cristã em que somos enxertados, crentes e não crentes. E ao sentimento de culpa, que a ilustra tão bem.
Sempre que assisto ao penitente "sinto-me tão culpado/a...!" lembro-me do "álibi das fotocópias", aventado por Umberto Eco, no seu livro Como Se Faz Uma Tese Em Ciências Humanas, com que bombardeio os meus alunos de Técnicas de Estudo, Investigação e Expressão Jurídica: corresponde este conceito a um hábito comum que os alunos (principalmente os recém chegados ao ensino superior) apresentam, o de tirar todas as fotocópias, comprar todos os livros e imprimir todos os materiais que os professores indicam, para os pousarem algures no seu canto de estudo e sentirem que metade do trabalho está feito, quando o labor ainda nem sequer começou.
A analogia encontra-se justamente aqui: o sentimento de culpa não pode jamais, como as fotocópias, ser um ponto de chegada (do género: "pronto, sinto-me culpado/a, assumi a culpa e agora vou ali sofrer um bocadinho por ter sido tão mauzinho/a) mas apenas e só um ponto de partida, como quem diz: "fiz merda da grossa, sinto-me responsável [o conceito de responsabilidade agrada-me muitíssimo mais, soa-me menos a des-culpa esfarrapada] e agora vou mas é pôr pernas ao caminho e tratar de emendar o mal que fiz ou, se não houver nada a emendar, tratar de me assegurar de que não cometerei jamais o mesmo erro".
(Do mesmo modo, o aluno que é possuidor do material deve parar para pensar: "e agora, o que fazer com ele?" e fazê-lo, efectivamente!)
Causam-me comichões os que, sentindo-se culpados, não passam do estado lamentável da pena por si mesmos. Sem nada fazer. Sem mexer uma palha. Sem mudar o que quer que seja.
Em contrapartida, temos aqueles que nascem para FAZER, em vez de arengar argumentações circulares labirínticas pelas quais são tolhidos e colhidos e donde dificilmente virão a sair: hoje, o P. e a K. intuíram que eu precisava deles. E eu precisava, mesmo que não soubesse. Ligaram-me a dizer: "ah e tal, gostaríamos tanto de estar aí, mas a distância/o trabalho/o cágado/a crise/a vida não nos possibilitam"?! Não. Fizeram-se à estrada e palmilharam trezentos e tal quilómetros para cada lado, só para almoçar comigo. E só me avisaram quando estavam a chegar. Porque independentemente da distância/do trabalho/do cágado/da crise/da vida, há gente que faz muito e por isso, não precisa de dizer grande coisa; provavelmente para contrabalançar os (muitos) que, de tanto falar de mea culpa, se esquecem daquilo e daqueles por que deveriam sentir-se responsáveis. Nunca penitentemente culpados, porque isso só os leva a manterem-se onde estão: a cêpa torta, que não leva ninguém a lado algum, para além do seu mui sofrido umbigo.)
A forma como aplicas o pensamento crítico ao nosso dia a dia, é de se lhe tirar o chapéu (mesmo não usando).
ResponderEliminarEstá-me no sangue. E como ou escrevo ou desato à estalada...!! ;)
ResponderEliminarTens que ter sempre uma esferográfica nO saco.
ResponderEliminar:))))
ResponderEliminarpois, só acredito em responsabilidades.
ResponderEliminarAssim ensinei minhas filhas repudiando o termo culpa, eliminando-o do nosso vocabulário.
Eu fiz exactamente o mesmo. Quando me falam em culpa de alguém, pergunto se a culpa é mesmo desse alguém...
ResponderEliminarO complexo de culpa é de facto inerente a este arquétipo cultural.
ResponderEliminarInclusivamente, nascemos já com a culpa original, o pecado original pelo qual, mesmo sem ainda ter feito coisa alguma, estamos condenados às fogueiras dos infernos. Salvamo-nos pelo baptísmo... mas apenas para começar, pois a culpa está sempre presente em todos os actos da vida.
Fui educado - como quase todos neste gomo, a grosso modo, do hemisfério Norte e Oeste em que se dividiu o mundo- dentro do espartilho estreito do Cristianísmo; um sistema de condicionamento comportamental que trabalha subtilmente o campo da culpa, do castigo sempre presente, amenizado de forma superior pela redenção alcançável mas sempre preclitantemente dependente dum juizo à hora da morte. Iniciada com a explusão do Paraíso, de algum modo desde Moisés que a mensagem está bem presente: sofrer a travessia no deserto para expiar a culpa, pois lá no fim fica Canaan, a terra prometida. A redoma de conforto fica assim sempre mais além, no fim da vida, e melhor ainda, depois dela quando não é exigível pelo passivo o cumprimento do sonho quando- no mundo dos vivos- era um activo.
Há um Deus que recolhe as almas e as põe do seu lado; o direito, que fique registado. Mas repare-se: mesmo depois de mortos, este Deus, apenas recolhe as que foram por esta ordem: crentes, tementes e cumpridores. O outros ficam a sofrer eternamente nos infernos. Contrariamente aos infernos de onde o judaísmo bebeu as influências onde este apenas era uma passagem para o renascimento, este inferno judaico-cristão-e-derivados, prolonga o sofrimento terreno "ad eternum". Haverá melhor sistema de domínio político do que este que nem na morte dá ao cidadão o direito à paz?
faz disto um post, pá!
ResponderEliminarDeixa a mecinha brilhar mais um pouco, Sâo Rozinhas, O post ( excelente e cheio de fibra) da Ana merece ficar em destaque mais algum tempo, nãoé??? ;)
ResponderEliminarMais loguinho, já o ponho agendado :)
ResponderEliminarOK. Não te baldes. Está excelente.
ResponderEliminarGrand'Ana! Eis uma culpa muito bem esgalhada.
ResponderEliminarA culpa e o pretenso sentimento acabrunhante que ela acarreta acabam por ser - também eu acho - um belo álibi para se sentar alguém nalgum canto, a carpir mágoas... e à espera que o tempo passe.
Eu cá, quando estou com culpas de alguma natureza, sinto assim como uma espécie de stress, que me assalta de fornicoques (creio que era assim que lhes chamava a minha santa avozinha) e me obriga a fazer alguma coisa ou contra ou a favor dos motivos da culpa. E a culp+a desaparece num ápice.
Haverá, pois, uma «culpa sorna» e uma outra «pró-activa», sendo que a primeira é melhor caracterizada como grande tanga ou conversa da treta...
Em todo o lado (com família, amigos ou colegas de trabalho) nunca uso a palavra culpa. Caí num caldeirão de «mea culpa» quando era pequeno.
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