janeiro 26, 2014

Olha lá, já alguma vez foste «praxado»?



Quando Portugal se encontra assolado pelo banditismo e pela aldrabice instituída nos chamados «mais altos níveis da nação», quando se encontra uma parte muito significativa da população portuguesa mergulhada na mais perversa indefinição sobre o dia de amanhã, discutir ou simplesmente discorrer sobre matérias tão imbecis, infantis e vis como as também vulgarmente chamadas «praxes académicas» poderá parecer estultícia ou nada mais que mais um argumento deletério a contribuir para a alienação pura e dura em que vamos mal sobrevivendo.

Ainda assim, este tema, que tende a ser ressuscitado a cada momento e sempre pelas piores razões, anda para aqui a titilar-me os neurónios, incomodativo e persistente, pelo que, como quem sacode mosca merdífera e nojenta, aqui deixo a minha tentativa de catarse.

Tudo se viu. Tudo foi dito. Tudo foi justificado. Quase tudo foi mostrado… Prendo-me, então, neste quase tudo… que nada mostra, afinal.

A «praxe», enquanto óbvio instrumento de dominação e de submissão nunca foi coisa que se desse bem com a minha mania do livre arbítrio. Coisas, enfim, de que enfermo, desde menino, e relativamente às quais os meus pais e professores tiveram grande parte activa. E nunca o foi nem na escola, nem na universidade, nem na tropa, nem nos empregos que já tive. Enfim, mas não seremos todos iguais... Daí que, pelo que me toca, este «fenómeno» se me depare algo alienígena e justificado apenas por uma noção de «sociedade da fartura» que não se sustenta em nada de muito consistente.

A «praxe», apresentada como «formadora de vida» só é argumento para quem não saiba viver. A «praxe», apresentada como «criadora de espírito de corpo» só é argumento para quem tenha um novelo de lesmas no lugar do cérebro. A «praxe», apresentada como «ritual iniciático», só é argumento para os néscios que chegados a um qualquer lugar na vida nunca pensaram previamente no que iriam para ali fazer. 

Ver estes «conselhos de praxe» constituídos por energúmenos já com curso concluído – que os há, como é óbvio… - a «organizarem-se» para promover as absurdas, violentas, fascistoides «praxes» para o ano lectivo vindouro, é – convenhamos, vá lá… ­- de um nível de imbecilidade e de inutilidade que ultrapassa a minha pobre capacidade de discernimento.

Curiosamente, algum estranho pudor e prudente recato por parte das instituições universitárias, castrenses ou estudantis vão, afinal, pactuando com e alimentando todos os desmandos – que tendem sempre a evoluir em escalada de violência e de irracionalidade – que alguns seres mentecaptos arvorados em líderes de pacotilha levam a cabo, com impunidades no mínimo suspeitas.

E, já agora, se em meio castrense a coisa pega de estaca pela razão de se seguir rígida e férrea hierarquia como condição da própria circunstância de se ser militar, o que dizer de um brioso jovem em fase de abraçar o mundo, munido dos saberes que a comunidade lhe proporciona já no mais alto nível e tendo como principal arma a sua individualidade, com a qual irá enriquecer essa comunidade que integra?

Um ser subjugado, humilhado perante o colectivo, mais ou menos exposto como «voluntário» para se degradar publicamente perante os seus pares é, afinal, rampa de lançamento para quê?  

Enfim, sociologicamente, a matéria será profunda. Mas não me apetece ir muito mais longe em espúrios ou nauseantes aprofundamentos, ainda que a realidade aí esteja a incomodar-nos a vida.

Aos que morrem… nada a dizer, pois, meus caros, não é mais do que a selecção natural a ditar algumas das leis a que vocês aderem tão acriticamente, contra todas as réstias de apuro civilizacional a que até a vossa posição privilegiada na sociedade vos deveria impor, em termos de consciência individual, lúcida e crítica - que para tal se deveriam ter formado, acima do nível  a que muitos dos vossos concidadãos tiveram acesso.

Aos que, sujeitando-se, sobrevivem… só espero não ter de vir a contar com eles na defesa de uma causa, na mesa de operação hospitalar, na avaliação de um preceito de justiça, na parceria para a criação de um acto artístico, no gesto solidário, etc. etc.

Desses interlocutores se espera sempre que sejam seres humanos. E tenho séries dúvidas de que «praxadores» e «praxados», do quilate que tem vindo a lume nos últimos tempos, tenham ainda artes de se guindarem a qualquer tipo de humanidade. 

7 comentários:

  1. Jorge: 150% de acordo com o que li! Só uma pequenina achega, se permites: No penúltimo parágrafo, so uma nota: Não esperas ter de vir a contar com elas para uma série de actividades, mas parece-me que infelizmente, muitos deles já estão no activo: É só olhar para a composição do governo do País...

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    1. É. O Jorge Castro vai ter que passar a fazer tudo sozinho...

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  2. Também concordo em tudo com o mestre Orca, com excepção de não ser como ele taxativamente contra a praxe.
    Fui praxado e praxei, dentro do espírito da "partida" em que no fim o pessoal acaba por beber uma bejeka e ficar tudo bem.
    No meu conceito de praxe, não cabe mais do que isso, uma brincadeira preparada com espírito e boa disposição.
    O que assistimos em inúmeros casos, é quanto a mim, uma total deturpação do que deveria ser apenas um ritual bem humorado de boas vindas. Não é uma praxe obrigar os recém chegados a práticas que atentam contra a sua dignidade, o seu código de conduta, e pior, contra a sua saúde. Ninguém em tempo algum me poderia fazer beber porcarias ou rastejar no chão para lamber botas fosse de quem fosse.
    A partir de um determinado momento, não é de praxe que se trata, mas sim da manifestação de desvios patológicos de personalidade. O jogo da dominação /submissão/ integração, sublimados ( sim porque supostamente já descemos das árvores há uns milhões de anos) numa praxe nunca devem ser mais do que isso. Uma coisa bem disposta de duração limitada, ou como alguns fazem, uma acção cívica . Há tantas formas interessantes de dar boas vindas, pela positiva. Tudo o que passar este limite deixa de ser uma praxe e coisas como as que aconteceram em que gente perde a vida passa a ser simplesmente crime. E como tal deve ser tratado. Aliás o código penal não destrinça os actos atentatórios contra a intregridade física consoante se integrem ou não em rituais: um sacrifício humano num altar é crime de homicídio e ponto.
    Quanto ao demais, o texto diz tudo o que penso sobre, como sempre teclado com elegância e assertividade

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    1. Nesta como em tantas outras coisas, caro Charlie, estaremos em sintonia. À partida, até nem terei nada contra as «diversões de acolhimento e integração», deixa-me chamar-lhes assim, com que os recém-chegados possam ser recebidos numa qualquer instituição, incluindo as universitárias.
      Mas presume-se a civilidade, o bom senso e o bom gosto - circunstâncias nunca adversas a um salutar espírito de irreverência, lúdico, até, e divertido... para todos.
      Daí aquela minha ressalva do último parágrafo: «do quilate a que vimos assistindo...»..
      Agora o que esta malta inqualificável está a perpetrar são rituais nazis, fascizantes, sob o olhar impávido e, daí, cúmplice das instituições que presumimos democráticas. E isso não é aceitável ou admissível!
      Teremos de meter na cabeça de alguns, a martelo que seja, que a liberdade de uns tem sempre por limite a liberdade dos outros? Julgo bem que sim, a bem dessa mesma liberdade.

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  3. Eu, que como é público não sou um "vidrinho sensível" no que diz respeito ao uso do vernáculo, sinto vergonha quando vejo filas de caloiros em Coimbra, a percorrerem as ruas com cânticos e palavras de ordem sem qualquer respeito por quem passa. Um despropósito total... e uma péssima imagem para os "futuros doutores".

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  4. Depois desta minha «entrada» muito me apraz registar que personalidades como Mariano Gago ou Maria José Morgado advogam o mesmo sentimento que deixei lavrado contra estas «praxes» militaristas (no pior dos sentidos), fascizantes e fascistóides.

    O (des)governo vem agora propor nova legislação sobre o «fenómeno». É típico destes coniventes incompetentes. Surge um problema: legisla-se. O problema agrava-se: legisla-se de novo. O problema descontrola-se: volta a legislar-se.
    E, assim, de lei em lei se julga, nesciamente, alterar a realidade por decreto. Outra característica típica da incompetência ao nível da governança... E, aqui, como diria o outro, a puta dança.
    Mas legislar para quê se tudo já está contemplado na lei? Valha-nos Santa Apolónia, Santo Eucarário e quantos santinhos mais por aí apareçam a valer-nos.

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  5. Até porque não são necessárias mais leis.
    Os disparates fascistóides onde normalmente os maus alunos mais velhos se empenham, roçam e até ultrapassam pela direita o que o código penal já tipifica como crimes.
    Mas se calhar os que na Assembleia legislam em diarreia, são os que passavam o tempo a praxar e não fazem ideia sequer das leis existentes.

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