julho 20, 2011

O postigo de oportunidades

A (com)fusão entre o público e o privado, em Portugal, tem contornos de relevância histórica porventura já capaz de ombrear com a gesta dos Descobrimentos ou com a capacidade de resistência popular às invasões napoleónicas…

Vem esta reflexão muito psico-sócio-antropológica a propósito de um singelo facto que tenho vindo a presenciar em diversas artérias lisboetas de (muito difícil) circulação e que consiste no seguinte:

- a par da praga pseudo-moralizadora das máquinas caça-níqueis da EMEL, que proliferam na capital com a bênção interessada da autarquia alfacinha – perdoem-me o desvio, mas não sei porquê, esta coisa faz-me sempre lembrar uma daquelas siglas mais elaboradas e distintivas, muito pós-25 de Abril, do tipo Câmara Municipal de Lisboa (m-l) – coexiste e floresce essa originalidade luso-urbana dos «arrumadores de carros».

E passa-se, então, esta coisa estranha e inovadora… ou talvez não: depois do munícipe pagar com língua de palmo a espórtula à caixinha da EMEL, desembolsa, em paralelo, o eurito ao solícito arrumador, tão solícito que chega a gerir a fluidez do trânsito na gestão dos lugares da sua área de influência, em manifestações surrealistas de poder popular ou sinaleiro de novo tipo, mas perante as quais o munícipe avisado pondera e acaba por considerar melhor largar mais uma moedita, em acumulação, que lhe assegure a tranquilidade de não ter a surpresa do inusitado risco na pintura – o que, se calhar, nem passa, afinal, de outro mito urbano.

Chega a coisa ao desplante organizacional de se poder combinar formas expeditas de dar a volta à fiscalização da EMEL através de acordo com o arrumador de serviço, que se encarregará de ir alimentando, moedinha após moedinha, a gananciosa maquineta apenas em função do aparecimento do fiscal no horizonte.

Para isso, o timorato ainda que espertalhóide utente chega a disponibilizar a chave da sua viatura ao arrumador, numa prova de confiança que, de algum modo, transcende o meu entendimento sobre a natureza humana e a sua infinita diversidade – logo eu que até sou um imensamente crédulo…

Excesso de zelo poderia conduzir-me a rotular o esquema como algo de incipientemente mafioso, ainda, digamos, no seu estado larvar, ficando-me sérias dúvidas quanto à conivência aparentemente patenteada pela autarquia e respectivas «forças da ordem».

Mas não. Má análise esta minha. Creio que devemos mais considerar que se trata daquele espírito de inventiva e criatividade, aquela arte de bem cavalgar toda a sela do desenrascanço, que nos fez e faz passar a vida a dar novos mundos ao mundo.

E se perspectivarmos a coisa em termos de novidades neo-liberais, não é este mais um excelente exemplo da sociedade que (alguns, poucos…) pretendem construir? E, pelos vistos, perante a passividade e avacalhamento instalados, vão podendo.

Não há, no exemplo citado, nenhuma diferença de fundo no que respeita à «capacidade empresarial» que se pede hipocritamente a uma juventude com formação e sem emprego.: que se desenrasquem, mesmo sem norte ou objectivos, mas que deitem mão à moedita diária da sobrevivência, que a EMEL, pela parte que lhe toca, já tem o negócio oficialmente montado.

Pelo caminho, uma versão moderna da lei da selva ou do salve-se quem puder. No que toca a pagar, pagarão os do costume, por hábito, por dúbio civismo ou por elementar medo. E não havendo janelas de oportunidades abertas, que nos baste um postigo.

Belo futuro, se assim nos mantivermos…   

9 comentários:

  1. Tenho cá uma alergia a arrumadores(M-L) que nem te passa...
    Acreditas que, quando vejo um lugar vago mas aparece um arrumador, não paro lá?

    ResponderEliminar
  2. Durante anos tive exactamente a mesma birra: se avistava o arrumador, não parava.
    Depois comecei a parar onde eles estavam e a não dar dinheiro (sem que alguma vez tivessem feito um risquinho no carro, devo dizer).
    Depois veio a Emel e comecei a dar a moedinha aos arrumadores: são mais tolerantes, e "roubam" mais barato.

    ResponderEliminar
  3. Eu tive já várias oportunidades de ir trabalhar para Lisboa. E sempre recusei.
    Na "província" roubam mais barato.

    ResponderEliminar
  4. Eu nunca teria oportunidade de ir trabalhar para fora de Lisboa, só aqui havia trabalho para mim. Por isso pago a sobretaxa para cá viver.
    Mas é bom: Lisboa é muito bonita, tem o rio, uma vida gira e uma luz lindissima. E tem o Aerorporto ))

    ResponderEliminar
  5. Aerolisboa, queres tu dizer. Aeroporto é o que eu costumo usar. Um pulinho.

    ResponderEliminar
  6. Não é sem uma certa tristeza e, porque não dize-lo, desconforto e mágoa até, que vejo o nome "Emel" trucidado, vilipendiado pelas práticas que este post denuncia.
    EMEL era a sigla de Escola Militar de Elctromecânica, situada e em Paço de Arcos, Lisboa.
    Uma instituição militar de prestígio, exigente e que qualificou milhares de técnicos em inúmeras áreas da electricidade, electrónica e electromecânica. Os ensinamentos e qualificações reproduziram os seus efeitos posteriormente na vida civil.
    Sendo eu um dos muitos que benificiou da então EMEL, não posso deixar de sentir o indizível nó que se me põe quando vejo a sigla nos bonés dos "ó faxavor vamos lá mazé a pagar etc..."´
    Bleghhhh!!! Que País este que teima em não ter memória...

    ResponderEliminar
  7. Bem que podiam chamar-lhe EMERDA...

    ResponderEliminar
  8. É.... e depois de ler novamente o texto e ver referências PREC-ianas aos M-L-eanos, não poderia de tecer um pequeno apontamento a propósito. A Escola Militar de Electromecãnica, de Paço d'Arcos era muito anterior aos quentes anos e ainda mais aos destemperados contemporâneos.

    ResponderEliminar
  9. Tu tens vontade de lhes aplicar electrochoques, certo?

    ResponderEliminar