A maior ameaça para a coerência, essa aparente bitola da idoneidade e até da inteligência de uma pessoa, é a passagem do tempo.
Claro que podemos equacionar um cenário de absoluta imobilidade e ausência de comunicação por parte de alguém maníaco da coerência, quem não tem a sua (a mania)? Mas aí temos a coerência tão posta em causa, filosoficamente se quiserem, pela incoerência óbvia entre a humanidade de quem liga a essas coisas e a postura inerte de um vegetal, como pelos efeitos da dinâmica de qualquer existência sobre as melhores intenções e as mais firmes convicções de que sejamos capazes.
A coerência é um ideal utópico, como qualquer outro dos que abraçamos para podermos manter viva a luta pelo absurdo a que chamamos perfeição.
É uma cenoura como outra qualquer para nos obrigar a combater a preguiça mental, bute lá ser coerentes para alguma coisa nesta vida feita de incógnitas e de imprevistos fazer sentido.
E a malta entretém-se assim, nem que seja a debater a incoerência dos outros para reforçarmos a fé na que julgamos dominar mesmo quando os factos nos obrigam a inventar desculpas para as falhas inevitáveis.
Ah e tal, virei à esquerda quando devia ter virado à direita mas foi só para não atropelar a velhinha que ia atravessar na passadeira. A incoerência esbate-se assim na obrigação de arrepiar caminho por força das circunstâncias, mesmo que a tal velhinha estivesse apenas a espreitar a montra do outro lado da rua e sem qualquer intenção de atravessá-la.
São as nossas decisões tomadas em função das conjunturas que muitas vezes nos obrigam a reconhecer (nem que seja pela crueldade de todos os outros a identificá-la) a incoerência que nos faz sentir tão desorientados por constituir um dos pilares da nossa estrutura de funcionamento básico. Digamos que se fossemos um barco à deriva a coerência funcionaria como uma espécie de farol à vela e com um GPS programado para estar sempre à nossa vista mas sem que alguma vez o pudéssemos alcançar.
A tal cenoura que referi acima...
Não julguem que não tenho a noção de que estando desse lado que é o vosso, a ler os dislates de um marmanjo qualquer que nesta ocasião sou eu mesmo, pensaria de imediato: olha o cabrãozinho a tentar dar a volta à coisa a ver se passa despercebido nas toneladas de incoerências que este mesmo blogue regista...
É essa a nossa reacção instintiva contra qualquer ameaça à coerência pela qual tanto pugnamos e nos permite, por exemplo, apanhar os intrujas com a boca da mentira na botija da estupidez. Sim, a coerência é valiosa também como mecanismo de defesa contra a incoerência que possa trair quem nos queira ludibriar. E por isso, há que defendê-la a todo o custo mesmo que isso possa revelar-se incoerente relativamente à nossa firme disposição de confiar no próximo e assim.
Lá está, a legítima defesa sobrepõe-se à coerência como aliás qualquer pretexto o consegue tendo em conta a tal necessidade imperiosa, visceral, de garantirmos a tal luz que nos guia ao fundo de um túnel sem paredes que atravessamos quase às escuras numa existência minada por pontos de interrogação que, de resto, são outra ameaça letal para a coerência.
Se ninguém perguntar nunca corremos o risco de responder errado, da forma incoerente que, como todos sabemos, é meio caminho para a pessoa, mais depressa do que o coxo, ser apanhada a (des)mentir.
Há que distinguir incoerência com evolução do nosso ponto de vista. Já vos falei da minha teoria das verdades alternadas? É assim: com base no que sei hoje, penso que algo é verdade. Depois, obtenho outra informação que me leva a concluir que, afinal, é falso. Mas mais tarde obtenho ainda mais informação e concluo que é mesmo verdadeiro... e por aí fora. Isto não se pode confundir com incoerência, penso eu de que...
ResponderEliminarNo antigo 7º Ano do Liceu, em Filosofia, ás tantas falava-se para lá duma tal de dialéctica, cuja mnemónica se a mnemória não mne falha, era para aí: Tese, Antitese , Sintese,; Tese , Antitese, Sintese! Isto muito repetido com ritmo, até parece "Pouca terra, Pouca Terra, UHUH!"
ResponderEliminarSerá que isto não tem a ver com as "Verdades Alternadas", ou será mais "correntes Contínuas"???
Eduardo
Paulo Moura: e quem entre nós faz sempre essa distinção?
ResponderEliminarEduardo: o que interessa é que não apanhemos um esticão quando metemos o bedelho nestas tomadas...
ResponderEliminarShark, se houver alguém entre nós dois :O) fazemos os três essa distinção.
ResponderEliminarEduardo, a minha é uma dialéctica pimba :O)
dialectica pimba, deixa-me ver se percebo: Tese - na dita pita; Antitese - na outra face da pita, ou seja entre nalgas;
ResponderEliminarSintese - a sumula nas beiças...
Será assim? E Pimba!!
Pois é, meus caros, o senhor Georg Wilhelm Friedrich Hegel é que tinha razão, com a célebre trilogia que referem. É porque pensamos criticamente (opondo, às nossas teses, as antíteses que as consolidam ou fazem ruir) que chegamos a novas teses (ou sínteses). E isso não me parece que seja incoerência, Shark... Lidei anos a fio com gente que via coerência onde hoje eu encontro dogmatismo e escuridão, tendo aprendido sozinha que mudar de ideias não é errado, desde que ousemos pensar pela nossa própria cabeça ("sapere aude!", dizia Immanuel Kant) e saibamos como e por que chegámos a essa mudança.
ResponderEliminarEvolução, verdades alternadas, tese/antítese/síntese... a nomenclatura é o que menos importa: trata-se de uma realidade que é comum aos seres (efectivamente) pensantes. E eu gosto disso. :)
Eu sempre fui alternadeira!
ResponderEliminarE eu sou a alternadeira mais antiga da blogosfera, com estabelecimento aberto e tudo!
ResponderEliminarPff...
Ana, eu não faço a apologia do imobilismo! :)
ResponderEliminarO que escrevi apenas descreve de forma resumida a forma como de facto as pessoas interpretam a evolução do pensamento a que aludes.
Nunca ouviste falar das expressões "revisionista", "vira-casacas" e outras que o povo inventou para quem muda de posição na barricada?
E se uma pessoa da tua confiança de repente começasse a desmentir sistematicamente tudo aquilo que antes de havia dito, instintivamente decidias que era um milagre da meditação ou que essa pessoa das duas uma: ou embirutara ou era um embuste?
Poizé...
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra (também diz o povinho e com razão): uma coisa é evoluir, rever, reconstruir (que não por meio da meditação, nem sei bem o que isso seja!!), outra coisa é ser oportunista e pensar o que dá jeito a cada altura. Creio que nenhum de nós se está a referir a mentecaptos ou a prostitutos mentais, porque com esses só gasto palavras quando não tenho mesmo outra hipótese...
ResponderEliminarEu sei que extremei o exemplo, mas era apenas para te transmitir a ideia que serviu de base ao texto, a de que a coerência, embora discutível como a provas, continua a ser um instrumento de medição da consistência de uma pessoa, sobretudo desde o advento do virtual que deixa tudo num plano em que verba não volant...
ResponderEliminarMuito tu gostas de me roubar freguesia, Shark Já pareces este governo, que quer acabar com mais de mil!
ResponderEliminarFiquei sem saber se terias ou não acabado o raciocínio, Shark, mas respondo ainda assim: concordo em absoluto com o que dizes. Coerência sim, ainda que não da mascarada de intransigência preguiçosa (porque dá sempre jeito ter uma opinião em que não se mexe e sobre a qual não mais se pensa, chamando consistência ao que eu chamo teimosia, dogmatismo... o que for!) e sem medos de mudar de ideias, se por isso se concluir.
ResponderEliminarQuanto à virtualidade... oh, o que para aí se vê e lê, por vezes, causa dó.
Cá segue a minha colherada: a mim, nestes saltinhos de opinião e de domínio relativo de saberes, o que me incomoda é mais um termo citado mais acima pelo Shark e que é o revisionismo.
ResponderEliminarNão na acepção de rever o que quer que seja à luz de outra luz ou de outro olhar, mas sim através da acção deliberada de deturpar uma realidade pré-existente. Coisa do tipo de erradicar uma personagem de uma fotografia de grupo porque, entretanto, a dita personagem caiu em qualquer desgraça.
O passo seguinte será revisitar a História mas com os novos dados (deliberadamente) falseados. Chama-se também a isso embuste.
Quanto ao mais, mudar de opinião pelo aparecimento de novos dados, numa cadeia de aquisição de conhecimentos, é a razão de ser da própria Ciência ou método científico de aquisição de conhecimentos. Normal, pois...
A gaita toda é que o embuste também é normal...
ResponderEliminarEça é que é eça...
ResponderEliminarEça! Eça é que é Eça! Como Camilo é que é Camilo.
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