outubro 30, 2011

«O desenvolvimento do subdesenvolvimento» - Boaventura Sousa Santos

Crónica do meu muito admirado professor de Ciências Sociais na FEUC, publicada na revista «Visão» de 20 de Outubro de 2011:

"Que democracia é esta que transforma um ato de rendição numa afirmação dramática de coragem em nome do bem comum?

Está em curso o processo de subdesenvolvimento do País. As medidas que o anunciam, longe de serem transitórias, são estruturantes e os seus efeitos vão sentir-se por décadas. As crises criam oportunidades para redistribuir riqueza. Consoante as forças políticas que as controlam, a redistribuição irá num sentido ou noutro. Imaginemos que a redução de 15% do rendimento aplicada aos funcionários públicos, por via do corte dos subsídios de Natal e de férias, era aplicada às grandes fortunas, a Américo Amorim, Alexandre Soares dos Santos, Belmiro de Azevedo, famílias Mello, etc. Recolher-se-ia muito mais dinheiro e afetar-se-ia imensamente menos o bem-estar dos portugueses. À partida, a invocação de uma emergência nacional aponta para sacrifícios extraordinários que devem ser impostos aos que estão em melhores condições de os suportar. Por isso se convocam os jovens para a guerra, e não os velhos. Não estariam os superricos em melhores condições de responder à emergência nacional?
Esta é uma das perplexidades que leva os indignados a manifestarem-se nas ruas. Mas há muito mais. Perguntam-se muitos cidadãos: as medidas de austeridade vão dar resultado e permitir ver luz ao fundo do túnel daqui a dois anos? Suspeitam que não porque, para além de irem conhecendo a tragédia grega, vão sabendo que as receitas do FMI, agora adotadas pela UE, não deram resultado em nenhum país em que foram aplicadas - do México à Tanzânia, da Indonésia à Argentina, do Brasil ao Equador - e terminaram sempre em desobediência e desastre social e económico. Quanto mais cedo a desobediência, menor o desastre.
Em todos esses países foi sempre usado o argumento do desvio das contas superior ao previsto para justificar cortes mais drásticos. Como é possível que as forças políticas não saibam isto e não se perguntem por que é que o FMI, apesar de ter sido criado para regular as contas dos países subdesenvolvidos, tenha sido expulso de quase todos eles e os seus créditos se confinem hoje à Europa. Porquê a cegueira do FMI e por que é que a UE a segue cegamente? O FMI é um clube de credores dominado por meia dúzia de instituições financeiras, à frente das quais a Goldman Sachs, que pretendem manter os países endividados a fim de poderem extorquir deles as suas riquezas e de fazê-lo nas melhores condições, sob a forma de pagamento de juros extorsionários e das privatizações das empresas públicas vendidas sob pressão a preços de saldo, empresas que acabam por cair nas mãos das multinacionais que atuam à sua sombra.
Assim, a privatização da água pode cair nas mãos de uma subsidiária da Bechtel (tal como aconteceu em Cochabamba, após a intervenção do FMI na Bolívia), e destinos semelhantes terão a privatização da TAP, dos Correios ou da RTP. O back-office do FMI são os representantes de multinacionais que, quais abutres, esperam que as presas lhes caiam nas mãos. Como há que tirar lições mesmo do mais lúgubre evento, os europeus do Sul suspeitam hoje, por dura experiência, quanta pilhagem não terão sofrido os países ditos do Terceiro Mundo sob a cruel fachada da ajuda ao desenvolvimento.
Mas a maior perplexidade dos cidadãos indignados reside na pergunta: que democracia é esta que transforma um ato de rendição numa afirmação dramática de coragem em nome do bem comum? É uma democracia pós-institucional, quer porque quem controla as instituições as subverte (instituições criadas para obedecer aos cidadãos passam a obedecer a banqueiros e mercados) quer porque os cidadãos vão reconhecendo, à medida que passam da resignação e do choque à indignação e à revolta, que esta forma de democracia partidocrática está esgotada e deve ser substituída por uma outra mais deliberativa e participativa, com partidos mas pós-partidária, que blinde o Estado contra os mercados, e os cidadãos contra o autoritarismo estatal e não estatal. Está aberto um novo processo constituinte. A reivindicação de uma nova Assembleia Constituinte, com forte participação popular, não deverá tardar."
Boaventura Sousa Santos

6 comentários:

  1. Bem aventurado seja o Boaventura, ao partilhar a sua lucidez com o mundo, cego ou anestesiado.

    Felizmente há mais mundo!

    Há só uma questão que se pode presumir retórica, sob pena de se tratar de grande ingenuidade, o que mal se acredita do autor do artigo: «Como é possível que as forças políticas não saibam isto...?».

    Claro que não sabem elas outra coisa. O que não lhes deixa margem de manobra para fugirem ao julgamento que a História lhes fará, mostrando-os cúmplices e agentes deste previsível atraso civilizacional da Humanidade que se propõem perpetrar, nas nossas barbas... e com o nosso voto.

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  2. Podes ter a certeza que a pergunta dele é mesmo de retórica.
    Adorarias ouvi-lo nas aulas dele. Um pavilhão (pré-fabricado) enorme... sempre a abarrotar.
    Eu, que sempre tirava apontamentos de tudo, nas aulas dele apenas me deixava levar pelo que ele dizia.

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  3. Ah, o quanto nos engrandece a vida o grande exemplo de um grande mestre!

    Acredito no que dizes, sem qualquer rebuço, claro. Também a minha questão era retórica, pois tenho uma ideia razoavelmente precisa daquilo que «esta casa gasta».

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  4. Não poderia estar mais de acordo.
    O que o FMI faz é a tal manobra insidiosa de que a religião é especialista e que consiste em instalar em toda a sociedade o complexo de culpa. Somos culpados da crise, por isso temos de pagar, somos dotados de pecado original e por isso temos de sofrer para o expiar. Para acalmar as revoltas basta dizer que os ricos não vão para o céu, mas sim os outros, os pobrezinhos, felizes por serem pobres, ainda mais felizes se forem miseráveis.
    Eu concordo, assino por baixo, Os ricos não vão para o céu, já lá estão.
    ... sṍ mais uma perplexidade me assiste nestes tempos em que gente iluminada e inteligente, como o dr Boaventura, parece não conseguir acordar as pessoas da anestesia de que aparentemente parecem estar atingidas: o que é feito da massa de gente com tomates? Esses: Os que mataram "os cabrais que são falsos à Nação?????"

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  5. E "bem aventurados os pobres de espírito, que deles será o Reino dos Céus"...

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