abril 14, 2014

Quando o RSI ajuda mas também é factor de exclusão

-"Isto não está nada fácil, sabe?". Foi com estas palavras que uma senhora, que até há alguns dias era uma perfeita desconhecida, interrompeu o meu trabalho no balcão de atendimento de uma empresa cliente em Castelo Branco. Apesar da interrupção ser inconveniente, resolvi não impedir indelicadamente a continuação do monólogo. Afinal, pensei que seria fácil manter-me concentrado no meu trabalho fingindo que a estava a ouvir. Estava enganado.

-"Vim buscar comida ali à cantina social. Infelizmente tenho de o fazer, não tenho outra hipótese porque não tenho dinheiro para comprar comida. O pior é que a comida nem sempre é boa e há dias ficámos todos doentes lá em casa, eu, o meu marido e a minha filha. As outras pessoas que lá vão também se queixam da qualidade da comida mas temos medo de falar porque, se o fizermos, vão-nos chamar de ingratos.Vamos lá ver o que me calha hoje na sorte."

A minha atenção começou a divergir da minha tarefa e fui ficando cada vez mais interessado naquilo que aquela senhora me dizia. Afinal, há coisas às quais é impossível ficar indiferente, sobretudo por aquilo que, a palavras tantas, ela acabou por dizer:

-"O senhor tem alguém na sua vida? Se tiver, namore! Aproveite! Eu e o meu marido deixámos de dar beijos há já algum tempo. As nossas noites são passadas a chorar. Eu tinha uma loja de trabalhos de costura que sobrevivia com dificuldade e acabei por fechá-la. Maldita a hora em que o fiz. O meu marido foi despedido pouco tempo depois porque o Governo mudou as regras (sic) e ficámos sem nada. Sabe o que é não ter nada? Moro numa cave e isso é tudo o que nos separa de sermos sem-abrigos. Não temos nada. Comida, detergentes, gás, não temos nada disso. É uma sensação horrível. Não o desejo a ninguém, nem à pior pessoa do Mundo."

Pergunto-lhe se não recebe nenhum tipo de apoio.

-"Sim. Recebo 150 euros do Rendimento Social de Inserção. Vai tudo para a renda e ainda assim não é suficiente. Depois falta o resto. No mês passado ainda fiz 30 euros a arranjar umas peças de roupa. Este mês não sei como vai ser. Às vezes venho aqui e esta senhora (recepcionista da clínica) dá-me alguma carne. Estou-lhe grata do fundo do coração."

Nesta altura, senti-me tentado a pegar na carteira para lhe dar algum dinheiro para poder comprar alguma comida. Pareceu adivinhar os meus pensamentos.

-"Sabe de uma coisa? Eu sentir-me-ia muito melhor com 3 euros ganhos a trabalhar do que com 5 euros que o senhor eventualmente me pudesse dar, porque é disso que precisamos, eu e o meu marido. Trabalho. Eu tenho muito jeito para trabalhos de costura e também para restauro. Faço restauro de livros, tapetes, carpetes,.... Imagine que até restauro tapetes de Arraiolos! O pior é que tento divulgar o que faço e não resulta. Tenho um blogue [ver aqui] e já distribuí panfletos. As pessoas até dizem "Você faz tanta coisa? Qualquer dia encomendo-lhe uns trabalhos" mas a campainha nunca toca."

-"Mas também não é só isso. As pessoas que recebem RSI são discriminadas e chegam até a ser tratadas como criminosas. Eu sinto isso.Nem imagina o quanto é duro."

Para terminar a conversa, fala-me de uma ideia que lhe foi sugerida por uma amiga: contactar a produção de um desses programas de televisão que têm ajudado pessoas em situação semelhante. O único obstáculo que a impede de o fazer é a vergonha. Pergunto-lhe porque não o faz. Afinal, o pior que poderá acontecer é receber um "não". Seja como for, estará sempre a bater a duas portas: a da solidariedade e a da promoção do seu trabalho. Ela fica a pensar durante algum tempo e, antes de se ir embora, remata:

-"O senhor é capaz de ter razão. Vou pensar seriamente nisso. Entretanto, se precisar ou conhecer alguém que precise dos meus serviços, agradeço que me contacte. Obrigado por este bocadinho e desculpe lá pelo tempo que lhe roubei. Mas sabe? Faz-me bem desabafar."

Foi assim que eu conheci a Dª Clara. Fiquei a vê-la ir embora e a pensar em tudo o que me tinha dito, aquilo que aqui reproduzi e outras confidências que seria indelicado partilhar. Perguntei-me quantas pessoas estarão neste momento nas mesmas condições, vivendo de uma solidariedade que chega a ser um factor de exclusão e sonhando com o dia em que a campainha finalmente tocará. Servir-lhes-á de conforto, sabendo que perderam tudo ou quase tudo nos últimos anos, ouvir os nossos governantes afiançar que o país está melhor? 

8 comentários:

  1. É constrangedor ler um (que é muito infelizmente apenas mais um entre milhares de casos de vida real) iguaizinhos a este e protagonizados por pessoas a que o tal que diz que o pais está melhor, chama de piegas.
    Trespassa ainda um elemento que é a chave mestra do processo de "ajustamento".
    Uma habilidade, peça de estratégia de comunicação social, certamente desenvolvida por uma inteligência superior, - qual General Relvas, - perversa e terrivelmente eficaz, que faz com que se passe silenciosamente da indignação para a vergonha e o silêncio.
    É a tal CULPA.
    A culpa de viver-se "acima das possibilidades"; chavão que faz a maioria dos injustiçados calar a miséria e chorar a vergonha em silêncio.
    Nunca como agora faz sentido o poema de Sheakespeare:

    A minha consciência tem milhares de vozes,
    E cada voz traz-me milhares de histórias,
    E de cada história sou o vilão condenado.


    Mas se o poema nos conduz de forma irremediável à nossa auto condenação, é também no poema que pode estar a nossa libertação, desta feita pelo pensamento de Ghandi, o grande Mahatma, passe a redundância...

    Estou firmemente convencido
    que só se perde a liberdade
    por culpa
    da própria fraqueza.
    ...

    E se a união faz a força, onde está essa força que nos une?
    Talvez numa última citação:

    ...Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
    Ninguém me peça definições!
    Ninguém me diga: "vem por aqui"!
    A minha vida é um vendaval que se soltou.
    É uma onda que se alevantou.
    É um átomo a mais que se animou...
    Não sei por onde vou,
    Não sei para onde vou
    - Sei que não vou por aí!


    Às vezes é preciso o negro para ver-se a luz....

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  2. Créditos da última citação: todos conhecem, mas nunca é demais reiterar a autoria do "Cântico Negro" do imortal José Régio.

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  3. Um dos inúmeros problemas da corja governativa é estar-se nas tintas para uma verdade elementar que norteia gente de corpo inteiro: a dignidade não tem preço. Essa ausência de conhecimento condu-los à insensibilidade criminosa como governam (?!?). Corja, pois! E alguma elementar justiça, neste mundo, obrigaria a que fossem parar à cadeia.

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  4. Pegando carona (ou gancho) no comentário de ambos, acrescentaria Voltaire quando diz que "a política tem a sua fonte na perversidade e não na grandeza do espírito humano".

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  5. A política ou a gestão da polis, entenda-se o interesse comum, é cada vez mais um conceito que se esvazia como um pneu furado.
    A política tomada por gangs que à boleia (carona ou gancho) do que deveria ser o interesse geral, se apodera da máquina política para servir a fauna que os sustenta à custa da perda constante dos excluidos, entenda-se: os que - esses sim-, representam o interesse comum.

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  6. O pior, Charles, é ver que essas "gangs" - metidas a políticos - contam em verso, prosa e em discursos...a paixão que têm pela política. E há imbecis que interagem, apoiando, dando crédito. Vem-me à mente uma grande frase de Nelson Rodrigues - tido por muito como obsceno e imoral nas suas peças de teatros, mas tacava das suas e que se danasse o mundo que o censurava. A frase, a qual gostaria de ter sido autora, traduz muito bem essa "paixão" nojenta: "Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única capaz de imbecilizar o homem."

    Mas em um país, como o meu, vejo que esse CAOS é, em parte, culpa do eleitor. Os caras vivem "assaltando", mas o povo - eleição seguinte - estão lá....elegendo o mesmo cara. Mas educar, dar conhecimento a essa gente que elege? Para que? Por quê?
    Se tiverem conhecimento....passarão a contestar, a debater... e a refletir. Isso não é nada bom para o Estado (e essa questão é antiga, tanto quanto o MUNDO). Mas alguma coisa desde lá... já mudou. De forma incipiente diante de tantos estragos, mas mudou, felizmente.

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  7. Pois.... é um facto
    Mas desde sempre que o Poder foi esse diabólico e afrodisíaco elixir que sobe às cabeças que se julga deuses.
    Eram deuses os Faraós, mas também Deus-Sol milénios mais tarde o imperador de França.
    E mesmo já sob a bandeira iluminada da Liberté, Egalité, Fraternité o auto-coroado Napoleão que diria aos seus soldados: "do alto dessas pirâmides quarenta séculos de história vos contemplam", afirmaria o seu absolutismo com a frase mítica de Luis XIV "L'Etat c'est moi".
    Penso muitas vezes e de forma madura sobre algumas teorias da conspiração que giram à volta de teses herméticas e maçónicas. O conhecimento como uma ferramenta do Poder. Existiria imenso conhecimento desde sempre guardado pelas elites e de certo modo, isto é confirmado pois era no clero com ou sem apoio das cortes que detinham acervos notáveis de documentos. O Vaticano com as suas infinitas bibliotecas era neste contexto o topo da pirâmide desse hermetismo e embora a recente libertação de grande parte dos seus arquivos, muitos continuam fechados a sete chaves e absolutamente inacessíveis.
    Enquanto eles mesmos detinham e debatiam em foro privado e muito restrito determinados temas,- cujo conhecimento exclusivo lhes daria vantagens nomeadamente económicas - perseguiam os que estando de fora dessas esferas do conhecimento tentavam aceder a eles. São inúmeros os casos de condenação por "sacrilégios, heresias e pactos com o diabo" daqueles que apenas procuravam pela expressão do pensamento ou por actos de experiência material, fazer avançar a fronteira do conhecimento.
    Assim, segundo essas teses, o mundo do conhecimento actual e global é apenas uma pequena parcela do potencial de conhecimento e tolerado pelos mandantes no mundo, no contexto de uma economia na qual eles estão sempre no topo.
    Sempre que algo é um grande negócio que exija algum conhecimento generalizado, este é libertado para as sociedades, mas de forma condicionada e sempre dirigida ao lucro.
    De algum modo temos de concordar com estas teorias pois sabe-se que as mega fortunas, não as dos Gates e congéneres, mas muito acima, pertencem apenas a uma mão cheia de anónimos de que apenas se suspeita.
    E quando pensamos que para comprarmos computadores e iphones etc temos de saber muito de algo, mesmo que não se saiba nada de mais coisa alguma, como podemos comprovar em imensos casos de licenciados em informática, (por exemplo), vislumbramos o que se quer dizer quando se afirma que o Conhecimento continua tão hermético como sempre foi, pois esse é o verdadeiro Poder.
    Depois, como digo num post que vem a seguir, há os idiotas úteis são corridos quando passam a inúteis, e que são peças da engrenagem que no fim de toda a cadeia serve os interesse dos muito poderosos e que não têm rosto.

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  8. A D. Clara sente essa discriminação porque, de facto, o RSI tem muitos "buracos" aproveitados por pessoas sem escrúpulos. Convido-vos a verem, nas estações dos Correios, quem vai levantar os valores do RSI e como se desloca lá. Seria um estudo muito interessante...

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