outubro 28, 2013

«Estou dividido» - António Pimpão

De alguns anos a esta parte muito se tem falado dos mercados, sempre numa aceção negativa. Eles - a economia financeira - são o diabo dos tempos modernos.
Os mercados são assim uma coisa fluida, fugidia, nefasta, sem nome nem localização exata, e, aparecendo-nos no plural, ninguém faz uma ideia de quantos eles possam ser: dezenas, centenas, milhares? Onde se realizam esses mercados? A que dia? São mafiosos? Têm uma organização e um chefe?
Quando era miúdo, não havia dúvidas do que era um mercado e onde se localizava e só desencadeava sentimentos positivos.
O mercado que eu conhecia – o da Figueira (da Foz) - era uma construção enorme, com 3 valentes portas, cheio de pessoas, bulício e animação, onde se vendia de tudo, mas de forma organizada. Sabia-se de antemão onde as coisas se encontravam: o sítio do peixe, da carne, dos brinquedos, do pão, do queijo, das regateiras, da fruta, das hortaliças e, nestas, onde estavam os produtores de Quiaios, de Tavarede, das Alhadas ou do Paião.
Eu ia então ao mercado com os meus pais quase todos os sábados, eles para venderem as suas hortaliças ou alguma criação, eu para os ajudar e, também, para vender os meus ramos de alecrim, que colhia nos montes, na véspera, depois de sair da escola. Gostava particularmente da semana santa, em que conseguia vender dezenas de ramos que as pessoas compravam para levar à igreja (os ramos de alecrim benzidos, cria-se, protegiam das grandes trovoadas).
Com a “comissão” que me cabia na venda desses ramos comprava e comia um ou dois queijinhos de cabra semicurados, a dez tostões cada, cujo sabor incomparável ainda hoje procuro nos queijos que como. Procuro, mas raramente encontro.
Também gostava de comprar favas de alfarroba, cujo suave adocicado adorava. De tal forma que quando surgiram as primeiras rações para animais, que eram vendidas ao quilo nalgumas mercearias, às quais ia com a rapaziada (não havia então cafés nem televisão) por ali ser mais quente e mais divertido do que em casa, um dos entretenimentos era meter as mãos na saca aberta da ração e encontrar, pelo tato, pequenos fragmentos de alfarroba e comê-los. Já se regressava a casa meio jantado.
Era este o único mercado que conhecia; os outros, os atuais, os do mafarrico, vieram muito mais tarde, vivendo não da hortaliça mas da especulação, dos juros e das mais-valias, assim ganhando rios de dinheiro sem muito trabalho. Na hora de perder, ninguém os apanha. Esta é a ideia que hoje se tem dos mercados, esses entes maléficos, imorais e gananciosos, longe, já, da imagem daqueles burgueses barrigudos com casaca às riscas – sempre eram pessoas! – que fumavam enormes charutos embrulhados em notas de dólar.
Mas:
Ao longo da vida – quero dizer, a partir dos 50, antes não se pensa nisso – comecei, na medida do possível e dos benefícios fiscais associados, a fazer os meus PPR e PPA. E a acompanhar a evolução positiva da sua cotação (isto até 2008). E a ficar satisfeito com os ganhos.
Outros subscrevem participações em fundos de ações, de obrigações ou mistos e, creio, devem sentir a mesma satisfação pelo bom rendimento desses fundos.
O fundo de estabilização da Caixa Nacional de Pensões não existe sob a forma de dinheiro depositado, antes está investido em participações em títulos mobiliários, títulos de dívida pública ou participações em outros fundos.
As reservas matemáticas das seguradoras estão, também, em grande parte, investidas em participações em fundos, estes, por sua vez, constituídos por títulos mobiliários e de dívida soberana dos países emitentes (devedores).
Isto que se passa em Portugal passa-se nos outros países, à respetiva escala.
Os mercados financeiros são, pois, constituídos por esta miríade de investidores pacíficos, para os quais olhamos com dois pesos e duas medidas: ao mesmo tempo que apreciamos que eles atinjam boas rendibilidades, as mais altas possível (sobretudo quando isso nos possa beneficiar, direta ou indiretamente), olhamos também para eles com desprezo e desagrado exatamente por procurarem (muitas vezes às nossas custas) essa elevada rendibilidade. E supondo que os que fazem uma coisa são distintos daqueles que fazem a outra.


António Pimpão

2 comentários:

  1. Pois é verdade que os "mercados"somos nós mesmos. Os juros que sabem bem e são o incentivos à capitalização dos nossos rendimentos e à colocação dos mesmos em aplicações que invariavelmente são...financeiras.
    E aqui é que a porca torce o rabo, como soi dizer-se, já que se queijo de cabra é bom, uma marrã parideira dá muita febra e leitão, um investimento de curto horizonte mas visível e ao alcance da mão.
    Podemos especular e tecer as mais rebuscadas teorias económicas, as falências de L.Brotheres, as crises de subprimes, o furacão Katherine, a borboleta a bater asas dar as últimas algures numa varanda hiper poluída de Xangai etc.
    Todas as explicações conduzem sempre ao mesmo ponto: a vigarice.
    Os juros apenas podem reflectir o crescimento real da economia, quando taL NÃO acontece está-se no campo da especulação e a trabalhar sobre cenários hipotéticos.
    Chegados a determinado ponto, já nem é a racionalidade mas a inércia que funciona e aí sim, podemos dizer que uma lepidóptera tresmalhada espoleta a queda do castelo de cartas.
    Porque por mais que esses senhores falem do mercado, nunca dizem que foram eles que transformaram uma saudável participação das poupanças individuais e institucionais na economia, numa coisa diabólica e criminosa chamado O JOGO DA PIRÂMIDE.
    A vertigem colectiva criada em torno de juros mirabolantes e irracionais e a necessidade por parte do sistema em captar mais poupanças para cobrir juros e a inventar activos sem qualquer valor real só poderia acabar em tragédia.
    Que depois nos venham querer tirar as nossas coisas, mexer nos nossos mínimos, na nossa dignidade, porque há alguém (no plural) que algures próximo do topo da pirâmide perdeu muito valor, é intolerável. Já é bastante mau acusarem-nos constantemente com o chavão "acima das possibilidades", mas que sejam os nossos a dar as mãos aos ladrões isso então nem tem qualificação.
    Se tudo foi um jogo de pirâmide, sigam para cima, para os topos, porque algures há Madoffs a rir-se das lágrimas alheias.

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    1. Bem "dizido", Charlie. E bem complementado o texto do Pimpão.

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