novembro 01, 2015

Pogrom, porque as memórias têm rosto, e não somos bons nem de brandos costumes.

Como escrevi muitas vezes, um silêncio sepulcral pesa sobre a mancha do irracional do nosso comportamento colectivo.
É tão fácil atribuir culpas a uma determinada etnia, grupo politico ou indivíduo. O irracional colectivo, a Besta humana, sempre pronta a ser conduzida por uma mão qualquer, sempre pronta a purgar pelo castigo máximo uma culpa individual qualquer que a todos prejudica.

É conhecida esta prática desde sempre. Entre os povos da Antiguidade, sempre que uma crise, uma seca, a fome se abatia sobre um aglomerado era necessário sacrificar alguém, quase sempre um ou mais jovens para que a ira dos Deuses se aplacasse e que a abundância regressasse.

Podemos dizer  hoje, que nos julgamos longe desses tempos, que não somos mais esses bárbaros. Nada mais errado, somos na essência os mesmos seres cujo comportamento basal se situa muito nos limiares da inteligência e do irracional instinto, uma mistura explosiva de onde tudo sai: a criatividade, a superstição, a efabulação, a religiosidade e finalmente a estupidez.

No entanto, se regressarmos aos tempos dos sacrifícios humanos, analisando os procedimentos sacrificiais, veremos como esses sacrifícios tinham um poderoso efeito sobre o comportamento colectivo.
A morte trágica de um inocente tinha o condão de aplacar as tensões sociais, a "culpa" tinha rosto, tinha corpo e tinha a missão suprema de já no campo do transcendente interferir sobre os humores Divinos. Em vez da culpabilização mútua entre determinados grupos, da guerra entre eles, das tragédias levadas a todo o território, um só sacrificado tinha o condão mágico de a todos unir...

Isto não nos faz lembrar nada?
De onde é que o Cristianismo bebe o básico dos seus fundamentos?
À sublimação do sacrifício supremo de um indivíduo para salvação colectiva. Facto que na Biblia está substanciado na passagem em que Abraão  vai, por ordem de Deus Pai, sacrificar o seu único filho. Salvo no último instante pelo Anjo quando Abraão estava prestes a atingir fatalmente Isaac, o seu filho. Apontando para um arbusto o Anjo indicou onde estava um carneiro para substituir a peça sacrificial.
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Nenhum Anjo surgiu no entanto em 1506. Naquilo que ficou para a História como o Pogrom de Lisboa, ou a Matança da Páscoa quando uma multidão perseguiu, torturou e matou centenas de Judeus, acusados de serem a causa da seca, peste e a fome que assolavam o país. Barbaramente torturados foram queimados em Autos de Fé no Rossio, numa manifestação que brutalidade que nos enche de incredulidade, que nos enoja, que nos envergonha....
. Nove anos antes os Judeus já tinham sido obrigados por D. Manuel a serem convertidos à fé Cristã. Cristãos Novos eram a designação pela qual eram conhecidos.

 A matança teve a faísca inicial no Convento de São Domingos de Lisboa no dia 19 de Abril de 1506.
Enquanto os fieis rezavam para o fim da seca e da peste que assolavam o país, subitamente a imagem de Cristo surgiu iluminada. De imediato, o povo em epifania, atribuiu o fenómeno a uma manifestação milagrosa
de origem divina. 
Deus teria por intervenção do seu Filho na Cruz, intercedido a favor do povo.
Contudo, um Cristão Novo que assistia à celebração, reparou como a luz que iluminava  o crucifixo era afinal apenas um reflexo vindo da rua. Bastou ele fazer referência à evidência para que o povo em fúria o espancasse até à morte....
A partir daí, e nunca é demais enfatizar a responsabilidade de determinadas figuras-chave no contexto dos diversos poderes, os Frades Dominicanos incitaram com promessas de expiação de pecados e  salvação das almas, a todos que perseguissem e matassem os Judeus, culpando-os pela desgraça que o país atravessava.
Durante três dias uma tragédia, só comparável hoje ao que o Estado Islâmico perpetra, caiu sobre os desgraçados que tinham assentado em Lisboa trazendo consigo uma fé diferente. Perseguidos casa a casa,  foram capturados, corpos arrastados pelas ruas, torturados e queimados vivos.
Tudo o que de mais bárbaro o homem pode infligir ao seu semelhante, conheceu palco na capital deste pais de Brandos Costumes...
Para que conste, porque o Futuro, tem memória....

4 comentários:

  1. A malta "esquece-se" disto.
    Bem hajas por relembrares.

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  2. Talvez não seja despicienda a abordagem muito, muito colateral, claro, nesta ocorrência de que, pelo meio da barbárie descontrolada, judeus e teres-e-haveres sempre andaram associados nas santíssimas mentes cristãs. Assim, pelo meio da porradaria bruta, uma alusão oportuna e cirurgicamente solta sobre os «cabedais» existentes, terá certamente ajudado ao recrutamento dos irracionais. E não foram poucas as pilhagens...

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  3. Talvez não seja despicienda a abordagem muito, muito colateral, claro, nesta ocorrência de que, pelo meio da barbárie descontrolada, judeus e teres-e-haveres sempre andaram associados nas santíssimas mentes cristãs. Assim, pelo meio da porradaria bruta, uma alusão oportuna e cirurgicamente solta sobre os «cabedais» existentes, terá certamente ajudado ao recrutamento dos irracionais. E não foram poucas as pilhagens...

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    Respostas
    1. Tal e qual....
      Oportunismo, velhacaria, filho de putices...a que os próprios Judeus nunca foram alheios.
      Aliás, o Pogrom, não nos horroriza pelo facto de serem Judeus desta vez as vítimas, mas sim o acontecimento em si. Foi um horror em 1506, como o é nos nosso dias em Gaza.
      E não venham com essa coisa de que são os Palestinianos os maus, pois estes agem em desespero, numa situação de total ausência de horizontes que é sempre má conselheira.
      Mas o que fazer quando a força ocupante rouba territórios, desvia e ocupa cursos de água que depois vende caro, derruba casas por coisas tão singelas como a falta de pagamento de IMI, ou parentesco com alguém apontado como terrorista?

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