julho 25, 2012

Em canal aberto


O líder dos socialistas e potencial Primeiro-Ministro mostrou-se chocado perante as imagens ao vivo da destruição provocada pelo fogo no Algarve e desabafou: “isto não é como ver na televisão”. Ou algo do género.
Até admito que tenha sido uma tirada espontânea, quiçá sincera, de um português confrontado com o resultado de uma política qualquer de terra queimada que ateia pirómanos ao serviço de interesses obscuros e lhes facilita a combustão com a falta de limpeza do mato que apanha tanto de surpresa os autarcas no meio de um incêndio rural no Verão como as sarjetas entupidas constituem um desafio renovado a cada inundação urbana em cada Inverno que passa.

Uma das maiores aflições que a falta de traquejo dos políticos destes dias me provoca é o notório alheamento dos mesmos da realidade tal como ela está a acontecer em Portugal. Não vale a pena invocar os concertos esgotados, os estádios lotados e as vendas em crescendo de Ferraris, a crise está a instalar-se de armas e bagagens de forma progressiva, galopante, e os discursos permanecem colados à questiúncula político-partidária, ao remoque, à gestão do imediato com a vista posta numa ambição qualquer.
A crise, que na boca da maioria dos políticos soa apenas como uma palavra forte, tão forte como maremoto mas igualmente dependente da percepção que pessoas afastadas de uma realidade conseguem formar a partir do que lhes chega no meio da confusão, no meio da pressão que inevitavelmente a gestão da crise, esse palavrão, lhes acarreta enquanto transtorno incontornável, enquanto conjuntura desfavorável para quase todas as recompensas que um cargo de poder, não viremos a cara à verdade, lhes proporciona, é um mal menor, um problema dos outros, para quem nunca a experimentou.

Lembrei-me do tal desabafo de António José Seguro e liguei-o de alguma forma neste texto à postura competitiva dos nossos líderes perante o monstro que nos atormenta porque, haja quem me desminta, se calhar tanto a multiplicação de incêndios como o alastrar da crise estão ligados ao alheamento à realidade de quem a vê pelos olhos de terceiros que, num contexto de exercício do poder com tudo o que isso implica, dificilmente a transmitirão com maior nitidez do que a televisão conseguiria. E porque a crise, não a palavra forte mas a debilidade humana à sua mercê, insiste em entrar pelas portas do cidadão comum que, para um político de topo, ficam quase nos antípodas das que governantes, aspirantes (chamam-lhes candidatos), deputados (um terço deles a partilharem funções com outras exercidas em nítido risco de sobreposição de interesses) e toda a corte financeira associada estão habituados a transpor.

No fundo é assim

A crise entrou hoje pela minha porta numa versão diferente da que venho experimentando ao longo do meu processo de decadência social, não sob a forma de mais uma ameaça relacionada com uma conta ainda por pagar mas com uma aparência muito humana.
Sim, a crise é uma palavra mas as suas consequências têm pernas.
A crise, a que hoje deu à costa para se exibir em toda a sua pujança, não entrou sem se certificar de que toda a gente ficava com a certeza de que não pretendia assaltar alguém. Repetiu três vezes o aviso que pudesse contrabalançar a aparência, que a de uma crise é sempre assustadora.
Entrou e explicou a custo, desdentado e com alguns copos a mais, que está desempregado e precisava de ajuda. E depois aprofundou.

A crise de hoje é um desconhecido, meu antigo colega de ofício, dezoito anos no tempo de vacas tão gordas que é fácil para mim entender que aquela pessoa, a crise, vem do mesmo mundo que cada vez menos é o meu, a classe média que a crise rasteirou.
Emprego e família perdeu-as no turbilhão. A casa foi algum tempo depois.
E ele, a crise, a explicar, a custo na pronúncia mas com desconcertante lucidez e com a desenvoltura no discurso de quem obteve bastante formação escolar, que se sabia embriagado mas precisava mesmo de se anestesiar depois da enésima entrevista de emprego marcada pelo organismo do Estado a quem isso compete, apenas para ouvir repetido o mesmo não acrescentado ao argumento da idade, 53 anos, que faz de um homem um trapo no que respeita ao mercado de trabalho.
A crise, aquela tão próxima que lhe sentia o hálito carregado de anestesia, verteu lágrimas aqui e além durante o tempo que lhe concedi para se apresentar, até porque não estava ali para assaltar mas apenas porque era a terra da sua infância, para onde fugia quando se sentia desesperado, e porque ele precisa de ajuda todos os dias para mais uma realidade impossível de transmitir pela televisão que é a da luta pela sobrevivência em sentido restrito. Passa longe de quem manda, a crise verdadeira, mas cola-se à vida de quem a sente na pele, pegajosa, a suar frio perante os apertos crescentes que aproximam uma pessoa, qualquer pessoa, de um ponto perigosamente próximo do declive para onde resvalou aquele meu antigo colega, um dos fatos com gravata que se cruzavam comigo em corredores prósperos onde todos acreditavam que em fazendo bem iriam fazer aquilo para a vida inteira.

Números que caminham

A crise que hoje me entrou pela porta, indumentária de recurso com marcas visíveis de um quotidiano menos limpo do que o dos políticos que gemem as suas impressões marcantes, os números terríveis, a estatística do desemprego, os números constrangedores, sem o amparo de uma condição financeira sólida, de uma multidão de conselheiros, de poderosos, de gente que sempre viu a crise pela televisão e até calhou estar distraída a conversar na altura ou a tomar decisões importantes para a vida da Nação, essa crise com duas pernas teve emprego, teve família, teve casa, teve carro, teve uma vida que entretanto se perdeu.

Perturbado, fiquei a ver a crise caminhar sobre duas pernas, um número da pessoa, rumo ao espaço para pernoitar por si encontrado na Gare do Oriente e que, um luxo, quase lhe garantia que alguém lhe ofereceria uma refeição, enquanto numa reacção instintiva mesquinha e egoísta pensei de imediato no cenário em que estou mergulhado e que tanto me aproxima do nível de crise daquele cidadão educado de classe média e ampla experiência profissional numa área medonha do meu ofício, os sinistros de acidentes de trabalho, e que ninguém emprega por já ter 53 anos e são apenas mais seis do que os meus e o futuro que a crise ao vivo e a cores me acenou surge como um borrão escuro desfocado no horizonte do pensamento, esboçado de forma grosseira no equilíbrio precário da minha condição.

E agora que falo nisso, nunca tinha visto a crise por esse prisma a partir das imagens na televisão.

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