outubro 30, 2013

«Uma casa portuguesa» - Vasco Pulido Valente (Diário de Notícias, 5 de Fevereiro de 1984)

"Um indivíduo está aborrecido com o emprego que tem, ou precisa de emprego ou ambiciona, por razões óbvias, ganhar mais. As coisas correm-lhe cada vez pior e as empresas privadas não o querem. Esclarecidamente, o indivíduo pensa no Estado, a que supõe o dever de lhe dar uma ocupação e proventos compatíveis. Não encontra nada ou o que encontra não o satisfaz.
Deste fracasso o indivíduo retira a conclusão de que o Estado não cumpre cabalmente as suas funções. Os seus enormes talentos merecem com certeza ser usados e seriam com certeza usados por um Estado que se prezasse. O indivíduo concebe então o plano simples de conseguir que o Estado reconheça a sua utilidade. Procura dentro de si sinais de distinção. Depressa se descobre uma especialidade, um amor, uma causa. Digamos, por exemplo, a casa portuguesa.
A casa portuguesa típica, que lhe despertou sempre surtos de paixão, desaparece lentamente da paisagem. As câmaras não a protegem; a Fundação Gulbenkian ignora-a; o público despreza-a. A preservação da casa portuguesa constitui um interesse social, digno da atenção do Estado. Aliás, todos os interesses sociais são dignos da atenção do Estado. O indivíduo decide, portanto, persuadir o Estado a encarregá-lo de preservar a casa portuguesa, tão ameaçada pela incúria, por autarcas néscios e pelos emigrantes.
Convoca três amigos: dois arquitectos e um autoproclamado sociólogo, como ele convencidos da sua importância e carentes de uns dinheiros. Os quatro põem-se em campo. Trata-se de obter acesso a um ministro ou a um secretário de Estado, através de relações pessoais ou de influências partidárias. O ideal é escolhê-lo num departamento com objectivos tão etéreos e brumosos como a própria preservação da casa portuguesa: a Cultura, a Qualidade de Vida, a Família, o Ordenamento Territorial, a Paz nas Consciências. Em rigor, qualquer serve, mas estes apreciam em particular os projectos fantásticos.
Imaginemos que o indivíduo e os três amigos se apoderam do ministro da Cultura. Tal ministro, principalmente se, como com frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar indiferença seja pelo que for que se lhe apresente como Cultura (com C grande). No "Botequim", Natália Correia vela. A esperteza reside em que tudo lhe pode ser apresentado como Cultura, até Natália Correia e a preservação da casa portuguesa. Intimidado, aflito, prevendo críticas devastadoras à sua relutância em preservar a casa portuguesa, o ministro rende-se. Discretamente, e supondo assim desembaraçar-se do sarilho, nomeia por despacho uma Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa, com o indivíduo e os três amigos, que passam a receber a remuneração mensal de cento e cinquenta contos, para o chefe, e cem cada, para os comparsas.
Ganhou-se a primeira batalha. O indivíduo adquiriu uma posição oficial. O próximo passo consiste em montar um cerco ao gabinete do ministro para lhe subtrair "espaço", isto é instalações. Como preservar a casa portuguesa nos corredores ou nos cafés? Sem telefones? Sem um sítio para guardar os papéis e atender pessoas? Os argumentos parecem racionais, a reivindicação justa. Comprometido no princípio, o ministro volta a render-se. A Comissão para a Preservação da Casa Portuguesa instala-se em duas assoalhadas, num canto obscuro do ministério.
Daí reclama telefones, um contínuo (para recados), uma escriturária-dactilógrafa e um técnico de terceira, destacados de outros serviços ou contratados de fresco entre familiares indigentes. Como recusar pedidos tão lógicos e triviais? Existe a Comissão, existem duas assoalhadas: o resto segue-se. O trabalho vai, enfim, começar a sério.
A Comissão produz, após esforços esplêndidos, um documento de dezassete páginas, com título de : «A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de uma Problemática, a Nível Urbano e Rural». Forte de semelhante obra, entra na matéria. Pouco a pouco, estende os seus tentáculos. Ocorre-lhe desde logo que os seus objectivos são intradepartamentais. A casa portuguesa também é da responsabilidade dos ministérios das Obras Públicas e Habitação, da Qualidade de Vida e dos Assuntos Sociais. A Comissão exige, por consequência, que se forme uma subcomissão com "representantes qualificados dessas áreas", e que se lhe atribuam os respectivos subsídios. Requisita, evidentemente, um carro para as tarefas de coordenação (e para ir a Sintra aos domingos). Mas não se esquece nem das autarquias nem dos emigrantes. Cheios de zelo, os seus membros partem para a província, enquanto o chefe, com mais majestade, "se desloca" às colónias portuguesas no estrangeiro, com o objectivo de esclarecer os emigrantes sobre as vantagens de "manter o perfil" das nossas queridas aldeias.
Entretanto, o chefe já informou o ministro da impossibilidade física de prosseguir estas enérgicas actividades em duas meras assoalhadas. Em luta dura com várias direcções gerais, institutos e gabinetes, a Comissão acaba por conquistar mais cinco e aumenta o seu pessoal de sete para vinte e sete. Chegou a altura de se ocupar da decisiva questão dos "contactos internacionais". A inutilidade notória do exercício assegura que a Comissão brilhará. No Conselho da Europa, na UNESCO, em viagens diplomáticas à Assíria e ao Daomé, o chefe e os sócios discutirão moções, aprovarão recomendações, estudarão acordos de intercâmbio, comerão jantares e tirarão retratos. O mundo ficará sabendo que Portugal, país civilizado, se preocupa com a preservação da casa portuguesa. O orçamento da Comissão subiu de três mil contos por ano para cinquenta mil, o que a torna uma coisa digna de respeito e, pelo menos, de uma condecoração da Embaixada Francesa.
A Comissão, porém, é precária. Não tem lei orgânica e não tem quadro. Acima de tudo não tem quadro. Os seus membros e empregados vivem no risco de despedimento, o que compreensivelmente os perturba, impedindo-os de trabalhar como gostariam. Para eles, os seus inestimáveis serviços justificam, mais, clamam, que lhes seja concedida segurança e aposentadoria. O ministro da Cultura entende esta angústia, porque aprecia que os seus subordinados o estimem. O ministro das Finanças, que não entra no ministério da Cultura, não se comove tanto. Mas é-lhe explicado o alcance da preservação da casa portuguesa, a sua indispensabilidade, o prestígio que a Comissão adquiriu em Bogotá e em Munique, e ele contrariadamente cede.
A Comissão transforma-se, deste modo, em Instituto para a Preservação da Casa Portuguesa, com um quadro de oitenta lugares, sendo cinquenta instantaneamente preenchidos. Muda de instalações, recruta telefonistas, motoristas, contínuos, técnicos, conselheiros, assessores. Gasta agora duzentos mil contos. O chefe inscreve-se no PSD e fala-se discretamente dele para secretário de Estado, em parte por causa de um livro de excessivo mérito chamado "A Preservação da Casa Portuguesa: Vectores de uma Problemática, a Nível Urbano e Rural".
A moral da história é a seguinte: se amanhã desaparecessem duzentos mil funcionários públicos, ninguém, excepto os próprios, daria por nada. Ou daria - daria porque pagava metade dos impostos."

Vasco Pulido Valente
(Diário de Notícias, 5 de Fevereiro de 1984)

4 comentários:

  1. Como é que o outro dizia?: " A História repete-se, primeiro como drama, depois como comédia", (ou era tragédia?). Curiosamente, este texto SÓ tem 29 anos... e também curiosamente, continua tão actual...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "É uma casa portuguesa, concerteza... é concerteza uma casa portuguesa".
      Ou, como escreveu o Mestre OrCa: «um bordel à portuguesa»!

      Eliminar
  2. Eu diria antes, uma mega-falácia.
    É fácil argumentar com a facilidade económica de matar o cavalo em vez de lhe tratar da pata magoada,
    Mas tal como nos filmes de cowboys, depois do tiro na cabeça do fiel amigo (que não bacalhau) era o esqueleto do portador da pistola que deixava depois e também as ossadas no deserto. Que fique para a História a lição que o sentido de marcha deixava: para esse lado iriam dar a parte alguma.
    Isto argumento eu, não para dar cobertura às espertezas da fauna parasita que gravita em torno do Estado, mas antes para alertar para o facto de que nas re-estruturações é sempre o varredor que vai para a rua e nunca o administrador e muito menos o afilhado do patrão. E é ai que entra o sentido deste texto. E é mesmo aí que vemos a falácia; vão professores para a rua, fecham-se centros de saúde e postos da guarda, põem-se os velhotes a andar de camioneta e A GASTAR DO POUCO DINHEIRO para receber as reformas porque fecham as juntas de freguesia, mas a canalha à volta do Passos e outros é cada dia que passa mais e mais.

    ResponderEliminar