julho 21, 2012

José Hermano Saraiva passou à História

A notícia do dia é a do falecimento de José Hermano Saraiva, um rosto sobejamente conhecido de todos os portugueses, sejam eles mais ou menos interessados na História de Portugal. Tinha raízes aqui pela Gardunha já que o seu pai era natural das Donas, concelho do Fundão, tendo por isso uma ligação especial a esta região, bem expressa nos vários programas televisivos que a ela dedicou.

O que nem toda a gente sabe (mas que por estes dias ficarão sem dúvida a saber) é que ele ficou indelevelmente associado à nefasta repressão aos estudantes de Coimbra durante a crise de 1969. Estranhamente, pelas palavras recentes do próprio JHS, fica a ideia de que para ele tudo não passou de um arrufo que se resolveu com um raspanete dado por si na televisão.

Ora, esta crise estudantil foi de tal ordem que levou até à alteração da lei da incorporação militar, que passou a excluir do exercício militar apenas os estudantes que tivessem "bom comportamento". Assim, muitos trocaram as capas negras pelos camuflados e os livros pelas armas e partiram para o Ultramar, em nome do ideal caduco de defesa um império que só a teimosia, insensível ao sangue dos que iam tombando longe de casa, continuava a sustentar. 

(Indispensável ler este artigo e este também)

Acérrimo defensor do Salazarismo, alimentou sempre que pôde e até ao fim da vida a ideia de que Salazar fora um "justo como ditador" (curioso anacronismo!) e até anti-fascista! Transcrevendo uma entrevista prestada em 2006 declarou inclusive que, ao chegar ao poder, Salazar acabou com a ditadura, embora depois admitisse que só as eleições para Presidente da República lhe pareciam democráticas. Seria interessante saber a opinião de Humberto Delgado sobre este ponto específico. Digo eu.

Seja como for, JHS tornou-se mais conhecido nas gerações pós-25 de Abril pela sua constante aparição em programas televisivos, com que procurou dar a conhecer a História de Portugal, e nos quais fez valer os seus dotes de enormíssimo comunicador para fazer passar a sua mensagem.

Eu próprio confesso que fui em tempos um grande fã destes seus programas mas, com o passar do tempo, talvez ao mesmo tempo que me ia embrenhando no conhecimento da História, fui-me desinteressando. Isso aconteceu quando percebi que, muito do que contava nos seus programas não obedecia ao rigor factual que seria de esperar na prestação de serviço público, perdendo-se muitas vezes em evocações tão gloriosas quanto fantasistas. Ao fim e ao cabo, misturava o irreal com o real, servindo depois o resultado ao público com o rótulo de História de Portugal.

No entanto, e aí há que lhe reconhecer o devido valor, teve o condão de fazer com que muitos portugueses se interessassem pela História e pelo património do seu país e da sua região. Ironicamente, talvez até eu tenha sido um deles. A ser verdade, ele foi tão bem sucedido que deixou de me cativar.

Em suma, hoje uma figura pública passou tecnicamente à História. Irá de facto deixar um certo vazio na televisão pública mas, meus amigos, não exageremos! Já ouvi ou li algures pessoas a afirmar que o seu lugar de repouso deveria ser o Panteão. Mereceria menos essa honra o Carlos Pinto Coelho do que o José Hermano Saraiva? 

Um simultâneo Persuacção / Blog do Katano

Foto: Crise Académica - Slideshare

21 comentários:

  1. Tirando o Sousa Veloso, assim que me lembre, não houve comunicador mais eficaz a fazer-me levantar do sofá para mudar de canal quando os televisores ainda não possuíam comando à distância.
    Na minha história o papel dele foi de causar maçadas.

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  2. Nunca o esquecer. Pelos bons e maus motivos...
    Parabéns pela excelente crónica.

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  3. Em termos de cultura e de sua transmissão, sempre lhe tirei o chapéu.
    Mas a malta de Coimbra tem-lhe um ódio particular... e bem justificado.

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  4. O falecido, pessoa que eu admirava mais pelas suas qualidades comunicativas do que pela precisão das crónicas, era também uma figura que eu não dispensava enquanto duraram os seus programas na tv. Ultimamente já bastante debilitado, tinha perdido grande parte da sua magia mas como somos em grande parte produtos da nossa memória, fui seguindo o seu trabalho enquanto durou.
    Obviamente que a intersecção dos universos, os dele e o meu, se esgotam na sua mediunicidade. Ele nem era isento (o que é isso, perguntamos) nem rigoroso e tive oportunidade de dizê-lo aquando de uma visita a Beja para gravação de um programa onde, a par de algumas coisas "de facto" me deparei como muito efabulação e ideias feitas.
    - Seja como for, sou o seu fã, disse-lhe, pois mesmo não sendo rigoroso, o senhor fez mais pela divulgação da História do que os milhares de livros que os alunos todos os anos passeiam entre a casa e a escola.-
    H. Saraiva, era realmente isso, um comunicador e ponto.
    Quanto ao resto... um apreciador de Salazar do qual foi um ministro fiel e inquestionável e sobre o qual nunca fez qualquer crítica. Era na boca dele, como diz o povo, Deus no Céu, e Salazar na Terra....
    E isso desde sempre fez-me questionar a qualidade dos seus trabalhos, pois se a vida é um facto contínuo do qual se escreve história, então não há periodos da história isentos de erros, falhas, ou insucessos, por mais brilhantes que possam ter sido nos intervalos, as glórias dos seus momentos, e disso o HS, nunca conseguiu dar expressão quando do ditador falava.

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  5. Vim ver onde o Rogério se inspirou.
    parabéns.

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  6. Também aqui vim pela mão do Rogério.
    Gostei do texto e até deu para reenquadrar a vida de José Hermano Saraiva, enquanto homem, político, historiador e grande divulgador da História de Portugal.

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  7. Sejam todos bem vindos ao «Persuacção».

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    1. A malta é que te agradece ;O)

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    2. Não, eu é que agradeço os agradecimentos da malta!

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    3. Desculpa, mas a malta agradece-te e não tens que agradecer esses agradecimentos.

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  9. Antes, da mais, amigo Katano, a minha chapelada por este texto do Katano!

    Subscrevo, na íntegra, o que nos dizes e destaco o desassombro e objectividade das tuas palavras, sem cuidar de «rodriguinhos» que o recente falecimento pudesse suscitar, neste país tão dado ao fado e ao branqueamento de algumas sardinhas demasiado passadas.

    Não sendo eu historiador, cedo fui, entretanto, alertado por quem sabia da poda quanto aos desvarios das «historinhas» do senhor professor...

    E aqui - e tudo isto é terrível - fica-me a dúvida enorme do benefício que o seu inquestionável poder de comunicação nos possa ter trazido. Pois quanto mais a mentira se reveste de artes de oratória, mais irremediavelmente ela é passada. Mas não deixa de ser mentira - ou falta de rigor que, para o caso, vai dar no mesmo. Lembram-se da quadra do Aleixo «para a mentir ser segura/e atingir profundidade/tem de trazer à mistura/sempre um pouco de verdade»?

    A nossa História já enferma de tantas efabulações que os dados objectivos e confirmados se diluem em coberturas de nevoeiro que encobrem muito mais do que o D. Sebastião do nosso descontentamento..

    Interessa, então e no caso em presença, que não se substitua Juno pela nuvem ou vice-versa, mas se assuma que não foi esta personagem maléfica «apenas» para os estudantes da Coimbra de 1969, mas sim um dos fautores responsáveis e conscientes do regime ditatorial em que vivemos durante 48 anos, que defendeu e elogiou - uma vez mais, conscientemente - quer o regime quer Salazar, como seu excelso timoneiro, sem que a sua «análise histórica» alguma vez o tivesse levado a apontar o menor dos seus incontáveis malefícios para Portugal.

    Com obstinações destas, vou ali e já volto, como se diz. Podíamos chamar-lhe coerência... mas isso ainda deixa o senhor professor pior na fotografia.

    Trata-se, afinal, do lado da barricada em que este protagonista escolheu estar. E ficou sempre clara a sua escolha. Agora morreu e, sim, como dizes, passou à História - só não sei, ainda, se a utilização da maiúscula aqui se justifica muito.

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  10. Na quadra do Aleixo, primeiro verso, leia-se «para a mentira ser segura...», claro.

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    1. A História são, cada vez mais me convenço, histórias... e historietas...

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  11. A minha primeira memória de José Hermano Saraiva é anterior a 1969. Por vários motivos: Morava em Belém, perto da Calçada do Galvão, onde viviam os sobrinhos de JHS, filhos do seu irmão exilado à força António José Saraiva, com a mãe.Andaram como eu no Liceu D. João de Castro. O mais velho, a quem perdi o rasto, é Engenheiro Agrónomo, ou Silvicultor. O do meio, ligeiramente mais novo que eu, tirou arquitectura como eu, embora se tenha dedicado aos jornalismos variados, desde o cor de rosa "Comércio do Funchal", até ao "Expresso" e à solar e africana aventura de o "Sol", o conhecido, determinado e frequentador de elevadores, José António Saraiva.
    Saí do Liceu D. João de Castro em 1963, sob a vigência do Reitor Julio Francisco Martins Sequeira "Dentes de Elefante, Nariz de Torneira" de sua alcunha nominado.
    Em 1964,foi nomeado Reitor o obituado JHS. Tendo tido que voltar ao liceu nesse ano, para tratar de obter na secretaria uns quaisquer documentos necessários à minha vida académica futura, a minha espantação pela liberalização de hábitos e costumes que se vivia então no Liceu D. João de Castro foi completa. A saber,anteriormente, ou seja enquanto lá andei: - As meninas só frequentavam o 6º e 7º ano; tinham entradas e recreios separados,e a sala do "gineceu" só para elas;Era proibido falarem com os rapazes (e vice versa) dentro das instalações do liceu; Fumar, só às escondidas na casa de banho; nos intervalos, não se podia ficar pelos corredores; Além do refeitório, havia um balcão de vestiário onde se vendiam alguns artigos de consumo- canetas, cadernos, à mistura com algumas sandes manhosas, bolos e chocolates; Em 1964, quando lá fui, encontrei musica ambiente nos corredores, grandes namoricos de apertados abraços e linguisticos beijos por tudo o que era recanto mais ou menos recatado, aconpanhados de espessas nuvens de fumo de tabaco expirado para os ares de todos os espaços comuns, uma sala de convivio comum, com bar incorporado, onde se prolongavam e apertavam os tais convivios intersexos, e tudo isto fruto da "liberalização de hábitos e costumes" que o novel reitor José Hermano Saraiva introduzira na orgânica interna do Liceu...
    Como veem, apesar das diatribes posteriores, na altura ele conseguiu introduzir junto daqueles jovens, uma abertura de espiritos,(e de corpos...) que certamente não foi esquecida.
    Depois, foi o que se foi vendo.

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    1. Ora, viste...!? Ou houve apertos no percurso, ou algum outro esquema esquizofrénico a perturbar-lhe os anseios.

      Certo será que foi demitido após a crise estudantil de 1969. Mas ainda assim não perdeu o seu acrisolado amor por Salazar. Assunto a carecer de aprofundamentos...

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    2. Tu estás a arranjar-lhes... um caso?!...

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