fevereiro 23, 2014

«Kiran Jethwa» - António Pimpão

Kiran Jethwa...
O nome acima nada dirá a quem não for seguidor ou, pelo menos, não vir de vez em quando o programa 24 Kitchen (Meo, canal 116).
O nome refere-se a um dos cozinheiros participantes que, tendo um restaurante em Nairobi, apresenta pratos do Quénia.
A razão por que venho invocar o seu nome tem pouco a ver com os aspetos da gastronomia africana ou queniana e mais a ver com a própria África e com a imagem versus realidade daquele continente não homogéneo.
Os episódios respeitantes a Kiran Jethwa incluem recorrentemente dois tempos: um primeiro, em que ele vai junto de nativos um pouco por todo o Quénia à procura de produtos e de práticas de cozinha locais (já o vi comer ratos ou insetos, por exemplo) e, por fim, faz um prato no seu restaurante citadino com os mesmos produtos com que nesse dia cozinhou junto dos nativos.
A primeira coisa que quero destacar é a simpatia e humildade do cozinheiro, a sua grande capacidade de relacionamento com os africanos – ele fala a língua nativa -, o primitivismo dos utensílios locais que usa no campo, a aproximação que faz às técnicas culinárias que usam, o à vontade e calor como saúda, se envolve e incentiva os locais – com frequência está a bater com os seus punhos nos punhos dos seus anfitriões, em sinal de amizade ou reconhecimento.
A segunda é o primitivismo das alfaias e instrumentos usados pelos locais nas suas múltiplas atividades, muito perto de serem apenas recolectoras, seja na agricultura, na pesca ou na navegação. Não se vê ali um trator, nem uma máquina e muito raramente há um barco com motor. As alfaias agrícolas, se assim se pode chamar, são do mais primitivo que se possa imaginar, os barcos não passam de jangadas feitas de pedaços de árvores trazidas na corrente ou placas de esferovite unidas por canas e presas por lianas. A pesca é sobretudo uma captura dos peixes à mão ou então com arpões lançados de canas tendo como força propulsora meros elásticos. A captura dos insetos para petisco é feita com uma bateria de chapas de zinco caneladas fixadas a cerca de um metro do solo, com uma certa inclinação, tendo no cimo uma iluminação forte para atrair os insetos à noite e, no chão, bidons abertos para os recolher quando, encandeados, escorregam pelas chapas abaixo.
Olho para aquele ambiente e faz-me lembrar a minha infância no campo, recordada não com os olhos com que então via a atividade dos adultos mas com a minha própria experiência em termos de imaginação, construção e uso de instrumentos de brincar.
É ao mesmo tempo uma coisa inocente e iniciática de fazer as coisas e de levar a vida, e também confrangedora, pois estão a viver nesta mesma época em que, entre nós, o mais pequeno e insignificante brinquedo de criança tem incomparavelmente mais técnica e sofisticação do que aqueles instrumentos de trabalho.
E fica, depois, aquela sensação de que não será tão depressa que algo se irá ali modificar. Não têm meios para ver além do seu atual quotidiano, não há horizonte, não têm acesso a qualquer tipo de mercado, não precisam de produzir mais por falta de quem compre. Vê-se que a terra é produtiva, para produzir de novo basta espetar uma estaca, pode haver duas produções por ano, mas as extensões cultivadas são pequenas, à dimensão das necessidades do dia-a-dia.
E, no entanto, os países ricos e as ONG contribuem com milhões de euros e de dólares para supostamente promoverem o desenvolvimento daqueles países. Diria, brincando, que anda alguém a colocar chapas de zinco por onde escorrega todo esse dinheiro.

António Pimpão

2 comentários:

  1. E da forma como o planeta vai acertando a equação do desequilíbrio energético que o Homem super(?) Sapiens alterou ao injectar enormes quantidades de energia no sistema, qualquer dia não há memória de como tirar uma caloria da terra mãe sem gastar para o efeito quatro.
    Dito de outro modo, estamos a meter quatro calorias no ambiente para que ele nos dê apenas uma.
    Assim, considerando o ciclo longo, quem é que é estúpido?
    O negro com a chapa de zinco, ou o nosso tractor top-model com gps que trabalha quase só como se fosse um robot e que gasta 25 litros à hora, queimando nesse processo e por hectare a quantidade de energia equivalente à consumida por duas mil pessoas em cinquenta anos de vida ?
    Isto para não falar do necessário para a produção do tractor e da energia necessária para o transporte de toda a sorte de produtos a montante e a jusante dos processos.
    Insustentável?
    Este modelo de queima fóssil é.
    Mas isso pouco interessa ao mundo do Bizz que se está cagando para a desgraça do mundo e que só vive para os millhões, independentemente do sentido último do que esses milhões significam

    ResponderEliminar