Terá existido com toda a certeza uma boa razão, um fundamento qualquer, para um dia alguém, um grupo, ter decidido que valia a pena chamar seu um pedaço de chão. Até aí a terra era de todos por igual, na teoria que a prática aparentemente trauliteira e sem dúvida territorial dos primeiros bandos nómadas em qualquer sítio onde parassem por algum tempo desmentiu.
Era de todos sim, mas espartilhada em função da respectiva ocupação por parte dos colectivos então dispersos para quem a partilha de recursos poderia equivaler à hipoteca de uma sobrevivência já de si precária.
Mas um dia lá apareceu quem gostou imenso da vista num sítio qualquer e achou que aquilo era bom demais para repartir à balda com os de fora, os estranhos em que passariam a tornar-se todos quantos não pertenciam ao grupo ali sediado. O conceito de estrangeiro nasceu aí, tal como teve embrião o de país ao qual nessa altura só faltavam fronteiras desenhadas à porrada, na versão igualmente trauliteira mas alegadamente mais civilizada da demarcação de territórios original.
No fundo a ideia era a mesma, definir com clareza quais os membros de um clã instalado em determinado espaço e distingui-los dos outros, os tais de fora, que se haviam instalado noutro sítio qualquer há tanto tempo que até já falavam entre si com linguagens incompreensíveis e exibiam costumes e objectivos diferentes de toda a vizinhança que entretanto decidira imitar o tal primeiro exemplo de um espaço de alguém, de um grupo, que pusera fim à liberdade de circulação tal como os nossos antepassados com maiores afinidades com os símios a experimentaram.
A coisa refinou com o tempo, sobretudo para se adaptar ao crescimento populacional que a vida mais pacata, sedentária, acarretou. Para evitarem escaramuças e confusões até tentaram firmar acordos que permitissem dividir os territórios com os respectivos limites bem definidos para ninguém reclamar como seu um pedaço fronteiriço qualquer, mas a História não esconde que essa solução nunca se revelou consensual.
As nações foram sendo moldadas pelas alianças de conveniência, pelos oportunismos de circunstância e acima de tudo pela força dos que mais a tinham para impor a vontade dos homens afirmando-a de Deus.
Mas a malta, os que não tinham alternativa, lá ia ficando e aos poucos se iam habituando a falar igual aos vizinhos e a cantar as mesmas músicas e a contar as mesmas histórias da vida que acontecia dentro de um espaço a que chamavam seu porque fazia parte de uma enorme propriedade colectiva chamada país.
Muito tempo depois da criação do primeiro aglomerado populacional com território reclamado como seu e pouco tempo decorrido sobre a perda de milhões de vidas à conta da cobiça expansionista, a galinha do vizinho, alguém percebeu que a melhor forma de acabar com essas cotoveladas, com esses chega para lá que o desenvolvimento da tecnologia militar ameaçava transformar num armagedão, seria unir os vários grupos distintos de um mesmo continente em torno de uma lucrativa e muito fraterna união das que se fazem à força dos milhões.
O problema é que esses visionários concentraram-se imenso na parte do lucrativa e ignoraram o risco de a coisa dar para o torto e tornar-se quase impossível de sustentar a parte do fraternal.
As mesmas populações reconhecidas pela paz e pela prosperidade que a ligação mais próxima com gente estrangeira parecia garantir viraram o bico ao prego quando começou a faltar o pilim e de um dia para o outro começaram a erguer-se os estandartes do salve-se quem puder e, como é tradição, os mais fortes e endinheirados olharam primeiro para os seus umbigos quando passou a estar em causa a salvação, assim o acreditam, de apenas alguns.
E se as fronteiras do passado começaram a redesenhar-se com enorme definição, pelo menos nas prioridades dos mais poderosos, as perspectivas para o futuro europeu ameaçam tornar-se num borrão, numa pasta disforme de incógnitas onde o cinzento predomina no céu cada vez mais escuro, mais carregado com a ameaça permanente de um tremendo temporal.