Crónica do meu professor de Ciências Sociais na FEUC, publicada na revista «Visão» de 5 de Abril de 2012:
"Uma decisão democraticamente tomada não pode ser destruída no dia seguinte por uma agência de rating ou por uma baixa de cotação nas bolsas"
"Porque é que a actual crise do capitalismo fortalece quem a causou? Porque é que a racionalidade da “solução” da crise assenta nas previsões que faz e não nas consequências que quase sempre as desmentem? Porque é que está ser tão fácil ao Estado trocar o bem-estar dos cidadãos pelo bem-estar dos bancos? Porque é que a grande maioria dos cidadãos assiste ao seu empobrecimento como se fosse inevitável e ao enriquecimento escandaloso de poucos como se fosse necessário para a sua situação não piorar ainda mais? Porque é que a estabilidade dos mercados financeiros só é possível à custa da instabilidade da vida da grande maioria da população? Porque é que os capitalistas individualmente são, em geral, gente de bem e o capitalismo, no seu todo, é amoral? Porque é que o crescimento económico é hoje a panaceia para todos os males da economia e da sociedade sem que se pergunte se os custos sociais e ambientais são ou não sustentáveis? Porque é que Malcom X estava cheio de razão quando advertiu: “se não tiverdes cuidado, os jornais convencer-vos-ão de que a culpa dos problemas sociais é dos oprimidos, e não de quem os oprime”? Porque é que as críticas que as esquerdas fazem ao neoliberalismo entram nos noticiários com a mesma rapidez e irrelevância com que saem? Porque é que as alternativas escasseiam no momento em que são mais necessárias?
Estas questões devem estar na agenda de reflexão política das esquerdas sob pena de, a prazo, serem remetidas ao museu das felicidades passadas. Isso não seria grave se esse facto não significasse, como significa, o fim da felicidade futura das classes populares.
A reflexão deve começar por aí: o neoliberalismo é, antes de tudo, uma cultura de medo, de sofrimento e de morte para as grandes maiorias; não se combate com eficácia se não se lhe opuser uma cultura de esperança, de felicidade e de vida. A dificuldade que as esquerdas têm em assumirem-se como portadoras desta outra cultura decorre de terem caído durante demasiado tempo na armadilha com que as direitas sempre se mantiveram no poder: reduzir a realidade ao que existe, por mais injusta e cruel que seja, para que a esperança das maiorias pareça irreal. O medo na espera mata a esperança na felicidade. Contra esta armadilha é preciso partir da ideia de que a realidade é a soma do que existe e de tudo o que nela é emergente como possibilidade e como luta pela sua concretização. Se não souberem detectar as emergências, as esquerdas submergem ou vão para o museu, o que dá no mesmo.
Este é o novo ponto de partida das esquerdas, a nova base comum que lhes permitirá depois divergirem fraternalmente nas respostas que derem às perguntas que formulei. Uma vez ampliada a realidade sobre que se deve actuar politicamente, as propostas das esquerdas devem ser credivelmente percebidas pelas grandes maiorias como prova de que é possível lutar contra a suposta fatalidade do medo, do sofrimento e da morte em nome do direito à esperança, à felicidade e à vida. Essa luta deve ser conduzida por três palavras-guia: democratizar, desmercantilizar, descolonizar. Democratizar a própria democracia, já que a actual se deixou sequestrar por poderes anti-democráticos. É preciso tornar evidente que uma decisão democraticamente tomada não pode ser destruída no dia seguinte por uma agência de rating ou por uma baixa de cotação nas bolsas (como pode vir a acontecer proximamente em França). Desmercantilizar significa mostrar que usamos, produzimos e trocamos mercadorias mas que não somos mercadorias nem aceitamos relacionar-nos com os outros e com a natureza como se fossem apenas mercadorias. Somos cidadãos antes de sermos empreendedores ou consumidores e para o sermos é imperativo que nem tudo se compre e nem tudo se venda, que haja bens públicos e bens comuns como a água, a saúde, a educação. Descolonizar significa erradicar das relações sociais a autorização para dominar os outros sob o pretexto de que são inferiores: porque são mulheres, porque têm uma cor de pele diferente, ou porque pertencem a uma religião estranha. "
Boaventura Sousa Santos
Os valores da Direita são e foram sempre assentes sobra a cultura do medo. É por medo que possa vir a faltarem recursos que o Homem se apropria para lá das suas necessidades desencadeando, pelo açambarcamento, a escassez relativa dos mesmos. E isto confere Poder. E isto é assim em todas as áreas. E é por medo de perderem que os grandes especuladores financeiros fazem repercutir os seus prejuizos sobre a sociedade em geral. É uma reacção primária, básica, mas que está para lá de toda a racionalidade e até de legitimidade e a que os administradores dos Estados deveriam estar imunes, ou melhor, deveriam de imediato pôr termo, assumindo sem reservas ou barreiras ideológicas o controlo dos sistemas económicos. Se tivermos em conta de que esta crise é baseada em uma enorme trafulhice, que legitimidade tem os especuladores para querer recuperar a todo custo um valor que nunca valeu nada? E que papel fazem os governantes que à conta desta trama bem urdida, entregam património nacional para as mãos desses que nos inventaram uma dívida?
ResponderEliminar"Os valores da Direita são e foram sempre assentes sobre a cultura do medo"... mas o que lixa tudo, parece-me, é que os valores da Esquerda são e foram sempre assentes sobre a cultura de que dá para tudo.
EliminarOs valores da Esquerda não existem. O Homem, é sempre de Direita na mó de cima e de Esquerda na mó de baixo.
ResponderEliminarO que importa é sermos inteligentes e sabermos que tipo de sociedade é que queremos, que modelo norteador de felicidade. Inclusiva e partilhada ou exclusora e concentrada. No momento actual estamos a regressar ao perigo da concentração do valor. O perigo disto reside na metáfora do puto dono da bola mas que só joga quando ganha. Quando a moeda corrente fica inalcanvável, tende-se a substituir por outra coisa que tenha valor de troca, nem que seja a troca directa como já se está a observar em Portugal. E isso é um perigo porque no momento em que os detentores de dívida virem o valor da moeda corrente depreciar por via do abandono por parte de alguns dessa moeda, eles irão querer cobrar em valor real e aí podemos estar a entrar em cenários que não raras vezes conduzem a guerras.
Paradoxalmente, se algum país sair do Euro, o que irá acontecer não é o aumento e estabilização do seu valor mas sim o seu contrário. Daí que não entendo porque é que a europa não actua como um todo frente aos ataques especulativos que pouco a pouco vão destruindo este projecto. ^Mas a resposta poderá ser o regresso ao início deste comentário: que tipo de sociedade é que se quer construir. No inicio chamava-se CEE, ou seja comunidade económica europeia. Mas agora que se lhe chama União Europeia o que menos se vê é uma europa unida... :(
Os valores da Esquerda não existem? Olha que os críticos dizem é que a Esquerda esbanja os valores...
EliminarA esquerda é a espalhadora dos valores que os da direita querem só para eles.
ResponderEliminarUm bocado espalha brasas...
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