abril 24, 2012

Da evidência dos juízos de gosto

Foi tema de debate académico, entre colegas e um professor, aqui há umas semanas e, invariavelmente (como tudo o que é filosofia, se não, não é filosofia nem é nada) tem a sua expressão no quotidiano do ser humano. Não que todos os temas filosóficos sejam fáceis de abordar em "conversa de café" mas este é-o.
Acontece que todos os filósofos sistemáticos (porque há os que não o são, como um Pascal e não serão menos filósofos por isso) têm dividido o mundo em três domínios diferentes, aos quais correspondem maneiras de pensar diferentes, justamente porque se debruçam sobre objectos de pensamento diversos (aliás, o velhinho e sempre actual Aristóteles disse qualquer coisa deste género: é próprio do homem inculto pensar de forma igual objectos diferentes - e só isto daria pano para mangas, mesmo porque a afirmação contraria o (dele) mestre Platão mas não vamos por aí, agora; ficará para outra altura).
É é mais ou menos consensual, e sob terminologia muito diversa, entender que os três domínios supra referidos serão:
a) o cognitivo (chamemos-lhe conhecimento científico, por uma questão de clareza), a que corresponderá a (necessidade de) prova;
b) o estético, que implica a evidência;
c) o ético-político, onde cabe a argumentação.
(haveria lugar para um quarto domínio, o religioso, que assume uma dimensão muito especial, por estar, de certa maneira, contido em cada um dos três acima e, ainda assim, ser à parte - mas deixemo-lo por ora)

E o que sucede é que não há aqui misturas: a ciência strictu sensu exige prova (experimental, desde Galileu) e é pela argumentação que vamos evoluindo em termos éticos e sociais. A questiúncula surge com a afirmação do juízo de gosto como ligado à ideia de evidência. Mas não é de outro modo, se pensarmos que, quando empreendemos uma discussão sobre se o clube A é ou não maior/melhor do que o clube B, ou sobre se os Beatles são melhores do que os Stones, ou mesmo se o Tony Carreira me é mais aprazível do que uma ária de Verdi, ou se cozido à portuguesa é petisco melhor do que bife com batatas fritas.
Não é por meio da argumentação (porque nunca convenceremos o opositor das nossas razões ou, mesmo que ele as aceite, dificilmente afirmará qualquer coisa como "sim senhora, vou já substituir toda a minha vasta discografia do Marco Paulo e passarei a ouvir unicamente Wagner, tens toda a razão" - se o fizesse, não passaria daquilo a que D. Hume chama pretender, conceito ainda há-de dar direito a um post) e muito menos por meio da prova (que importa a um admirador da Ruth Marlene se a métrica ou a harmonia do que ela canta seja cientificamente inferior, de uma perspectiva musicológica, às encontradas numa canção dos Pearl Jam?) que o juízo de gosto do parceiro se alterará.
E isto porquê?
Porque sentimos as coisas de que gostamos como evidentemente melhores do que aquelas de que não gostamos ou pelas quais sentimos indiferença. Ou seja, os nossos gostos são-nos tão evidentes (e não se pense na evidência como universalizável, esse será o maior dos erros do senso comum: o que para X é evidente pode não ser para Y - neste domínio e só nele) que raramente se alteram, a não ser que, de moto próprio, conheçamos outras realidades estéticas que se nos afigurem ainda mais evidentes.

Claro que o senso comum percebeu isto, tendo-o plasmado no adágio "gostos não se discutem". O que o senso comum provavelmente queria dizer é que, da discussão, dificilmente nascerá gosto diferente no parceiro. Pode ceder-se num ou noutro ponto, mas só se não tivermos a nossa opinião (ou, mais rigorosamente, o nosso juízo) bem elaborada, por desconhecimento ou desatenção (por exemplo, eu poderia achar que Picasso era o melhor dos pintores até conhecer Paula Rego, ou que Paris era a mais bela cidade do mundo até conhecer Praga).

Eu, por mim, prefiro dizer que os gostos discutem-se sim; de resto, é o que mais discutimos (mesmo inverbalmente) no dia-a-dia. Mas que se trata de uma discussão, as mais das vezes, estéril, ai disso não tenho a menor das dúvidas.

17 comentários:

  1. Eu gosto de rinocerontes. Nunca me tinha ocorrido que isto pudesse ser uma "evidência". Mas é evidente que sim... é muito evidente para mim gostar de rinocerontes. Há alguém aí que não goste de rinocerontes? :O)

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    1. :) Olha, eu não morro de amores. Mas gosto de cobras (acho-as fascinantes). E se me dessem a escolher duas coisas para comer o resto da vida, optaria por pão e manteiga. E Coca-Cola.
      E gosto de descascar batatas e de dobrar meias.
      E isto é tudo tão evidente que me faltam os argumentos para explicar porquê.

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    2. Eu também gosto de cobras... aliás gosto muito de todos os bichos sem saber dizer ao certo de qual ou de quais gosto mais. Os únicos bichos de que não gosto são os vermes, as carraças e as sanguessugas... e também não gosto muito de lampreias...
      O gosto está em nós e não na coisa de que gostamos... e por isso é sempre intransmissível... com ou sem argumentos. Mas às vezes se não desperta (ou desperta) é mesmo só por insensibilidade ou ignorância...

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  2. Olha... eu confesso-vos uma fraqueza: gosto muito de olhar para mulheres. E não me considero um «voyeur» doentio, nem nada disso, nem isso me produz qualquer espécie de inibição. Gosto, pronto. Nem me interessa tanto se estão muito ou pouco vestidas. Gosto. Aprecio sobremaneira gastar algum do meu tempo em contemplação desse lado do ser humano que - julgo eu... - ilumina mais os nossos dias, com estéticas que o homem tem dificuldade extrema em atingir.
    Não torço o pescoço, na rua, à passagem da mulher, entenda-se. Até porque a idade e os anquilosamentos nos vão tornando propensos à contenção de gestos bruscos. Mas gosto de observar tranquilamente, como se de obra artística se tratasse, esse «outro lado de nós».
    Já tentei introspecções íntimas e terapias internas pressupondo diagnósticos de perversão. Mas conclui que não era nada disso e estou muito bem comigo assim. E radiante por vê-las!

    Mas, Ana, tens aqui um tema deveras interessante. Na verdade, é tempo inutilizado tentar convencer uma (ou um) fã (ou fan)do Tony Carreira de que o homem não vale um espirro. Puro desperdício de tempo e de argumento, porque há tanto de inconsciente, subjectivo, irracional em cada um dos nossos gostos, como haverá de cultural, circunstancial e mesmo atávico, dependendo do «cadinho» em que cada um foi macerado. E isso está em nós, indelével, sem que racionalmente o possamos alterar, mesmo querendo. Além disso, ele não vale para mim... Não serei eu quem esteja menos certo?
    Poderemos fingir - principalmente para nós próprios - que alteramos um gosto, ou um gostar, como diz uma querida amiga. Mas não passa de fingimento e de consequências imprevisíveis, pois nada há de pior do que um recalcamento extravasado.
    Valha, pois, aquele grande dito: ama e faz o que quiseres.
    Claro que o acesso (a sério e não de faz de conta) de todos e de cada um ao conhecimento, há-de ir alterando dogmas e paradigmas, através da consciência própria do livre arbítrio. Mas isso tem de ser muito temperado pelo tempo...
    Belo artigo. Deixou-me para aqui cheio de ideias.

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    1. Tenho contigo a semelhança desse gosto por ver mulheres. Não acredito é que os meus olhos vejam nelas o mesmo que os teus... E também gosto muito de ver homens. Muito! Aprecio ver corpos como quem vai a um jardim ver as árvores e a flores. E faço-me sempre tão discreta tanto quanto possa até à invisibilidade. Nunca entro na piscina sem me fazer acompanhar daquele espírito do David Attenborough... Tenho lá visto corpos extraordinários... Mas até hoje o recorde de beleza foi batido por uma mulher gordinha com uns cinquenta anos. Tinha a cintura bem definida e os membros faziam lembrar cones compridos com qualquer coisa de Botero... Mas o que tinha de mais belo aquele ser era a extrema graciosidade com que se movia na água... Nadei ao lado dela devagar todo o tempo que pude sem me cansar de apreciar cada movimento, cada gesto... e duvido muito que ela se tenha apercebido sequer que eu estava ali...

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    2. Jorge, se foi para te dar ideias, já ganhei o dia. Venham elas!!! :)

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  3. Eu, não sei porquê, também prefiro apreciar mulheres a descascar batatas ou dobrar meias.

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    1. Tu és uma gaja voiarista São. Pões-te no teu bataclã a governar a cena e no meio de dois servicinhos (ou três) lá tem as meninas que ir descascar alhos à mão....com ou sem dobras nas meias,,,

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    2. SIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIM.........................

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    3. És um publicitário (exagerado).

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  4. Mas o gosto...
    Se há tema rico é este o do gosto, já que gostar implica escolha e preterimento. Gosta-se sim, mais disto do que daquilo, ou de tudo sem escolha, mas aí já não se chama gostar, pois não há o privilégio do feedback de uma emoção em particular a condicionar e a sobrepor-se a outras.
    Se gosto de Tony Carreira? Obviamente que não, mas não chego a detestar. Já ouvi e vi uns concertos daquela família na TV. Ouvir aquilo é um exercício curioso de pesquisa pelos meandros pela capacidade que temos de nos surpreender. E dou por mim a ficar surpreso, pelo facto de ver tanto rosto emocionado a ver e ouvir repetidamente lugares comuns e clichés. Surpreende-me os olhares embevecidos e profundamente emocionados a derreter-se diante do autor de pérolas como;" tenho o mundo à tua espera/ e a prim'vera/pode acabar. Surpreende-me o idolatrar de um individou com uma voz fraquissima, de pouca extensão vocal, que canta cantigas todas iguais entre si. Surpreendo-me com tudo isso e dou por mim a ficar surpreendido e isso faz com que de repente aprecie o Tony pelo muito que me ensina sobre as pessoas, e como é fácil aprisiona-las nos seus envólucros de fascínio e simultâneamente de conforto. Gostamos do que gostamos, pois estamos habituados a gostar de determinadas coisas e isso faz a viagem da descoberta permanecer sempre em volta do umbigo, numa viagem em espiral fechada em que se surpreendem a descobrir sempre o mesmo.

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  5. Dessas que tudo curam, desde as unhas encravadas até ao mau olhado,

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    1. Tipo..."ai e tal, não sei o que tenho, se foi ali a menina dos saltos altos que deitou um rabinho de olho, ou se foi ali mais há atrasado, a outra de maminhas quase ao léu...."
      Pelo sim pelo não, vou comer uma panqueca...

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