Sim, eu sei que a vida é a autora do livro da minha existência. Não posso escrever as páginas. Mas anoto furiosamente as margens, mas lanço-me e ocupo cada espaço que a vida esquece em branco. Porque a vida é demasiado grande, tão grande que não pode ver todos os seus detalhes, tão grande que muitas vezes não me vê; e essa é a minha vantagem, os seus pontos cegos são a janela onde inscrevo a minha vontade. Ainda bem que me sei infinitamente pequena. [A Rapariga Vulgar (I) ]
O Sr. António da retrosaria nunca gostou de se sentir pequeno. Encosta-se à porta do seu estabelecimento para que o olhar possa ir à rua, ao outro lado da calçada, atravessar de gozo o corpo da rapariga; julga que assim a corta ao meio, a metade do seu tamanho, e sente-se ainda maior. A rapariga encolhe os ombros e continua a tentar atrair o desejo e a bolsa dos que passam; a magreza e a saia demasiado curta pintam-na de vulgaridade mas não lhe retiram a beleza, pára um carro e alguém a convida a entrar. O Sr. António é a feição do desdém, lábios finos, uma linha feia de sarcasmo coberta por um bigode amarelado; troca comentários ordinários com o Sr. João da padaria: "lá vai com mais um, lá vai com mais um" e ri-se, seco, gordo, uma gargalhada trocista que lhe ensopa a flacidez do pénis. Corre para dentro da loja, enquanto finge continuar a rir, para que ninguém lhe veja a mancha da humilhação espalhada nas calças. O Sr. António nunca gostou de se sentir pequeno; agora, é o balcão que o corta ao meio; o riso trocista pasmado na cara contrai, nos olhos, o brilho da vergonha que lhe esborracha lágrimas através das órbitas e que lhe espalma o corpo pendente e molhado contra a barreira do balcão.
Sou fã desta rapariga (in)vulgar!
ResponderEliminarOs senhores Antónios, nesta sua coisa de nem crescerem bem nem saírem de cima, são uns empata-vidas...
ResponderEliminarVê o lado positivo: proporcionam-nos estes textos da Miss :O)
ResponderEliminarOs Antónios desta vida, há os em todos os lados. Os que transformam os balcões no prolongamento dos pénis que mal tem e por isso, os usam como substituto. A sensação de Poder que o conforto do seu reduto lhes dá é transversal e lata. Como balcão do senhor António funcionam as fardas dos agentes, as posições de chefia (dos tais chefes que jamais o são, que não falam com ninguém, apenas dão ordens, por detrás do seu balcão de chefia).
ResponderEliminarAli no seu conforto, são poderosos. Veêm o mundo por cima, na rua, são apenas a sua pequenez. Naufragos num deserto de vida, onde os seus cartões de crédito não compram um odre de água.
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade a que chamamos fama!"
ResponderEliminar- Mestre Luís de Camões