Se tentarmos olhar desapaixonadamente para o que se passa em Portugal, há assim como que uma imanência que ressalta, tipo aura luminescente, a rodear todo o território nacional, e que parece conferir-nos um estatuto diverso e divergente do resto do mundo.
Creio que, já em 1902, Júlio Dantas na sua Ceia dos Cardeais, referia «como é diferente o amor em Portugal». De facto, se estivesse apenas no amor essa diferença, talvez até passássemos despercebidos, aconselhando-se tão só uma acautelada e doméstica gestão dos afectos.
Mas não. A coisa vai mais longe, em termos de originalidade. Dir-se-ia, mesmo, que se cultiva por cá o contraciclo, a excentricidade, o encanto de alguma marginalidade com o excesso apaixonado pelo trivial, que tantas vezes descamba na inveja versus o ser-capaz-de-fazer, na virulenta maledicência em vez da humilde autocrítica… enfim, em consabidas maleitas de que não há meio de nos regenerarmos ou, então, não queremos mesmo regeneração nenhuma e nestas águas é que nos sentimos a navegar de feição.
E somos, por isso mesmo, capazes de casar a maior estagnação com a realização dos mais piramidais feitos, que não lembravam a ninguém nem ao mundo todo. E lá vamos, em marcha progressiva, sendo felizes, sobreviventes, acomodados, até eventualmente, atingirmos esse estadio supremo do não-ser, que será uma mistura de Disneylândia com o País das Maravilhas da Alice, cultivado numa espécie de grande armazém de sucatas ao abandono, do qual o proprietário se tenha ausentado para parte incerta há mais de uma dúzia de anos….
O Presidente da República exerce o seu superior magistério junto dos cidadãos através do Facebook, ferramenta a que se alcandorou pela mão de algum parente mais novo, que lhe revelou, de súbito, um mundo novo onde os amanhãs cantam sempre que um homem quiser e sem contraditório.
O Primeiro-Ministro, um case study de mentiroso compulsivo, de estilo rasca no discurso mas de assessorias sempre à mão, impinge ao país a mais desbragada governação, em exercícios alucinados de autismo… e colhe noventa e tal por cento de votos de apoio na sua família de apaniguados, numa preocupante manifestação de «coisa nossa» mas, ainda assim, temperada a alecrim e rosmaninho, muito ibérica, muito chegadinha ao mar.
Isto, apesar de ser claro até para a UGT – indubitavelmente próxima do PS - quais os principais culpados da actual situação, e cito da sua muito recente (de 19 de Abril, p.p.) posição oficial sobre o processo negocial com a EU, BCE e FMI:
A UGT sempre defendeu que não deveríamos recorrer ao pedido de ajuda externa, face aos condicionamentos políticos, económicos e sociais a que a mesma conduz.
Os sacrifícios que foram exigidos aos portugueses nos últimos 3 anos, primeiro devido à crise financeira e consequente crise económica, e depois devido à necessidade de redução do défice orçamental, poderiam e deveriam ter evitado tal situação.
Infelizmente, erros políticos nacionais e a não resposta adequada da União Europeia à especulação financeira, que recaiu sobre alguns Países, conduziram à actual situação.
Entretanto, o que temos? As «forças da ordem» mendigam dinheiro para fardamentos. Os juízes não têm verba para os tinteiros das impressoras. Os professores perderam a paciência, algures entre o enésimo relatório e o milionésimo primeiro grito ingloriamente soltado na expectativa de que a turma se cale para o ouvir. O funcionalismo público vai assumindo, com garbo e denodo, o seu estatuto de causador de todos os males do mundo e assume a diminuição de vencimentos como corolário «lógico» da coisa. As empresas públicas querem ser privatizadas. As empresas privadas fazem questão de assumir que o Estado interfira nelas até ao limiar conveniente das conveniências muito próprias e intransmissíveis dos seus gestores. O fisco constrange o cidadão miserável até ao seu mais miserável cêntimo e olha com bonomia para os rios de duvidosos dinheiros que lhe vão perpassando debaixo dos olhos em mais do que duvidosos negócios. Os ucranianos são muito bem vindos, como os caboverdianos já o foram, mas apenas para darem serventias, agora de preferência com formação superior, colhendo nós, os reguilas, ao desbarato, o investimento que, na Ucrânia, se terá feito na atribuição dos seus conhecimentos académicos. Sem atentarmos que os nossos jovens licenciados estão a pirar-se lá para fora… quem sabe, um destes dias para a Ucrânia. Agricultura, Pescas e Indústria foram e mantêm-se a banhos, algures, em parte mais do que incerta. Etc., etc., etc.
Enfim, este é o consagrado discurso da desgraça, de que todos estamos aparentemente fartos, mas que não muda, nem está para mudar.
Alguém próximo de mim preconizou – e eu subscrevo – que a solução do governo do país passaria pela contratação de gestores credenciados, através de anúncio no jornal. Talvez sob o olhar atento da Presidência e da Assembleia da República.
Alguém tem alguma coisa contra? Estariam salvaguardadas as instituições democráticas. Combater-se-ia, em termos de não obrigatoriedade de distribuir lugares pelos amigos, o compadrio instalado e aniquilador de qualquer desidério nacional. E talvez se combatesse com mais eficácia o sacrossanto défice. Volto a perguntar: alguém tem alguma coisa contra?
Ou, colocada a questão de outro modo: haveria alguma diferença, em termos de independência nacional, relativamente ao que ocorre actualmente sob a batuta da «troika»? Eu, daqui, não estou a ver, mas pode haver por aí quem saiba mais e melhor…