abril 15, 2011

«Inconformismo e criatividade» - crónica de Boaventura de Sousa Santos

Transcrevo aqui essa crónica publicada na revista «Visão» da semana passada, do professor Boaventura, escrita da mesma forma com que nos deliciava nas aulas de Introdução às Metodologias das Ciências Sociais, na FEUC:

"Poderá surgir em Portugal algum adversário credível que impeça que um país seja levado à bancarrota pelas agências de rating?
É hoje consensual que o capitalismo necessita de adversários credíveis que atuem como corretivos da sua tendência para a irracionalidade e para a autodestruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais antissociais e injustas que sejam as consequências. Durante o século XX esse corretivo foi a ameaça do comunismo e foi a partir dela que, na Europa, se construiu a social-democracia (o modelo social europeu e o direito laboral). Extinta essa ameaça, não foi até hoje possível construir outro adversário credível a nível global.
Nos últimos 30 anos, o FMI, o Banco Mundial, as agências de rating e a desregulação dos mercados financeiros têm sido as manifestações mais agressivas da pulsão irracional do capitalismo. Têm surgido adversários credíveis a nível nacional (muitos países da América Latina) e, sempre que isso ocorre, o capitalismo recua, retoma alguma racionalidade e reorienta a sua pulsão irracional para outros espaços. Na Europa, a social-democracia começou a ruir no dia em que caiu o Muro de Berlim. Como não foi até agora possível reinventá-la, o FMI intervém hoje na Europa como em casa própria.
Poderá surgir em Portugal algum adversário credível capaz de impedir que o país seja levado à bancarrota pela irracionalidade das agências de rating, apostadas em produzir a realidade que serve os interesses dos especuladores financeiros que as controlam com o objetivo de pilhar a riqueza e devastar as bases da coesão social?
É possível imaginar duas vias por onde pode surgir um tal adversário. A primeira é a via institucional: líderes democraticamente eleitos reúnem o consenso das classes populares (contra os media conservadores e os economistas encartados) para praticar um ato de desobediência civil contra os credores e o FMI, aguentam a turbulência criada e relançam a economia do país com maior inclusão social. Foi isto que fez Nestor Kirchner, Presidente da Argentina, em 2003. Recusou-se a aceitar as condições de austeridade impostas pelo FMI, dispôs-se a pagar aos credores apenas um terço da dívida nominal, obteve um financiamento de três biliões de dólares da Venezuela e lançou o país num processo de crescimento anual de 8% até 2008. Foi considerado um pária pelo FMI e seus agentes. Quando morreu, em 2010, o mesmo FMI, com inaudita hipocrisia, elogiou-o pela coragem com que assumira os interesses do país e relançara a economia.
Em Portugal, um país integrado na UE e com líderes treinados na ortodoxia neoliberal, não é crível que o adversário credível possa surgir por via institucional. O corretivo terá de ser europeu e Portugal perdeu a esperança de esperar por ele no momento em que o PSD, de maneira irresponsável, pôs os interesses partidários acima dos interesses do país.
A segunda via é extra-institucional e consiste na rebelião dos cidadãos inconformados com o sequestro da democracia por parte dos mercados financeiros, com a queda na miséria de quem já é pobre e na pobreza de quem era remediado. A rebelião ocorre na rua, mas visa pressionar as instituições a devolver a democracia aos cidadãos. É isto que se está a passar na Islândia. Inconformados com a transformação da dívida de bancos privados em dívida soberana (o que aconteceu entre nós com o escandaloso resgate do BPN), os islandeses mobilizaram-se nas ruas, exigiram uma nova Constituição para defender o país contra aventureiros financeiros e convocaram um referendo em que 93% se manifestaram contra o pagamento da dívida.
O Parlamento procurou retomar a iniciativa política, adoçando as condições de pagamento, mas os cidadãos resolveram voltar a organizar novo referendo, o qual terá lugar a 9 de abril. Para forçar os islandeses a pagar o que não devem, as agências de rating estão a usar contra eles as mesmas técnicas de terror que usam contra os portugueses. No nosso caso é um terror preventivo, dado que os portugueses ainda não se revoltaram. Alguma vez o farão?"

16 comentários:

  1. ... e como se o caso não fosse já suficientemente difícil, com a permanente ameaça externa, por cá ainda temos que lidar com a ameaça interna. Pois. A tal que visa "pilhar a riqueza e devastar as bases da coesão social". Sim, essa. A tal que nos arruinou a capacidade produtiva, e a mesma que não só nos vendeu a soberania por trinta dinheiros, como ainda se encarregou de nos pôr na mira de todos os abutres. Sim, essa. Essa há muito que está instalada cá dentro.

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  2. Libelita, tu nem pareces ser uma rapariguinha jovem, camarada, pá!

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  3. E quem te disse que eu era uma "rapariguinha jovem", camarada, pá? Eu como é baguinhas goji todos os dias... ;)

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  4. Então deves emborcar paletes dessas baguinhas.

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  5. Pois, claro! Pois não foi assim que outro chegou aos 250? O Li Qing Yuen? E suspeita-se que tenha morrido de suicídio...

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  6. O Li também comia baguinhas?
    E se comermos quem come as baguinhas?

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  7. Já ouvi dizer que também dá muito bom efeito.

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  8. Belíssimas pistas nos deixa aqui o artigo do Boaventura Sousa Santos. De facto, sem medo ou empecilho que o tolha, o capitalismo selvagem das grandes corporações regulará o mundo em três tempos e nem serão precisas grandes conspirações. Basta comprar uma mão-cheia de dirigentes corruptíveis - de que nem há falta... - e ir consolidando esta nova «ordem» mundial.
    Abençoados islandeses e tantos quantos mantenham uma postura activa contra este estado de coisas.
    Dos portugueses poderemos talvez esperar um dstino de sobrevivência. Esta manha morna em que somos altamente especializados pode ser, também, um segredo de longevidade.
    Mas estou a falar dos portugueses enquanto povo. Não dos efémeros detentores do poder. Que esses, coitados, morrerão um dia. E o tal povo, mesmo que mal e roto, há-de sobreviver-lhes. Para que o nosso dia, entretanto, seja mais auspicioso hoje e não em data a perder de vista, a dificuldade estará em fazer-lhes entender isso - a uns e a outros...

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  9. Talvez uma votação muito bem repartida nos cinco da vida airada lhes traga algum bom senso...

    Que ninguém permita, tanto quanto as forças não o abandonem, que alguém deixe de votar nas próximas eleições. Que se transforme o descontentamento numa arma - tão simples, afinal. Caramba, basta prescindir de uma ou duas horas de imobilismo e lançar o papelinho na urna, votando nas «franjas».

    Esta vai ser a minha tese, até às próximas eleições: 5 x 20%. E, depois, das duas uma: ou TODOS se revelarão os eminentes filhos da puta que o tal povo suspeita que eles sejam, ou os arranjos a fazer nas diversas instâncias do poder haverão de contribuir para alguma alteração deste status pantanoso em que estamos atolados.

    E seria a última oportunidade. Dali para a frente e a verificar-se a primeira hipótese, uma única resposta: porrada. Não vejo outra saída...

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  10. Esqueci-me de acrescentar: outra saída digna, claro.

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  11. Estou absolutamente de acordo, embora eu tenda a radicalizar um pouco mais... a ver se ito resvala para um resultado "aceitável"... ;)
    E sei exactamente de onde me vem este profundo sentimento de revolta. Ainda hoje quase acordei a escrever sobre isso, porque se não escrevo, corro o risco de uma explosão interior:

    Quero o meu voto de volta!

    Quero de volta a liberdade pela qual os meus pais e avós lutaram.
    Quero-a de volta.
    Quero de volta o meu dom de errar. E de acertar.

    Apanharam-me um bocadinho distraída, e quando acordei, tinha na mão um bilhete de autocarro usado. A agora querem convencer-me que este papel me serve de alguma coisa. Fora melhor! Quem pensam que estão a enganar?

    Vá, depressinha! Deixe-se de tretas e passem para cá o meu voto. É meu por direito! Que seja em branco, menos mal. Mas devolvam-mo!

    É aqui, neste ponto, que se aloja o expoente máximo do meu descontentamento. Quero que a gestão de empresas públicas seja feita por pessoas competentes, à margem da lógica partidária. Quero que as suas remunerações, no máximo, não excedam os valores do mercado europeu, e que, sendo excelentemente pagos para tal, assumam deveras responsabilidades pelo trabalho que desenvolvem. Quero que as fundações, algumas convertidas em "empresas familiares" como a AMI, prestem contas ao estado e aos cidadãos. E como estas, quero mais uma dúzias de outras coisas, mas pelo menos, no mínimo dos mínimos, quero a validade do meu voto para poder expressar de forma válida o meu descontentamento perante a forma desavergonhada como se atropelam os interesses dos cidadãos neste país. Em suma, o que eu quero, é a reposição da democracia.

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  12. (Deixo aqui uma notinha à entrevista a Jorge Miranda, ontem, que achei muito interessante:

    http://ww1.rtp.pt/antena1/index.php?t=Entrevista-a-Jorge-Miranda.rtp&article=3461&visual=11&tm=16&headline=13

    o video é o que está em baixo).

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  13. Muito interessante mesmo. Hoje fui ao lançamento de um livro com um antetítulo que achei um mimo: "Lisboa, amante cara de um país pobre".

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  14. A um pobre, seja qual for o grau da sua pobreza, qualquer amante é-lhe sempre cara... ;)

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  15. No nosso caso, bem que dispensava a amante.

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  16. A libelinha digo que oiço todo o dia a Antena 1, só saltando um pouco para as outras a certas horas para me dar conta do que se passa, ou não se passa, fora da bolha da Ant.1
    A entrevista foi excelente ou não fosse o Jorge Miranda quem é.

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