abril 18, 2011

A Rapariga Vulgar (VII)

A beleza da meia luz entorpece a banalização das colunas, nunca deveriam existir colunas aqui, onde o estrondo do rosa agudo se faz sentir no verde desmaiado, dois estabelecimentos lado a lado sem qualquer consideração pela harmonia, os seus néons magoam os sentidos de quem passa; magoa-me que tratem as calçadas, a meia luz, as colunas, os semblantes de quem passa, assim. Mais acima, os CTT são um eco vermelho do estrondo de mil garrafas em queda num contentor; roubam-nos a estética, a beleza, o silêncio, também ninguém os quer, somos todos muito feios. "Precariedade não é futuro", assegura-nos o branco sujo, desconfortável, do cartaz; quando se tornou o desconforto assegurador? O castanho baço do cabelo de uma rapariga, no que se assemelha a uma bicicleta sem rodas, confirma: não é futuro, não é futuro, não é futuro! Não há tom mais tom do futuro que o castanho baço. O futuro é o feio, o feio que entra pelos olhos enquanto um homem feio grita pelo feio cão. O feio corta a toda a volta; à noite, todas as noites, das linhas do passeio, varre-se o presente. [A Rapariga Vulgar (VI)]


Magoa-me, magoa-me, magoa-me, magoo-me, sim, sou eu. Ontem, queimei-me, acidentalmente, o borrão aceso do cigarro caiu-me numa perna e fiquei a ver aquela dor incandescente, tão mais bonita, tão atroz, tão perfeita e forte e viva e nítida que me apaixonei por ela e esqueci-me das outras. Mas depois foi-se, acabou-se, a beleza é beleza pela sua brevidade atroz, toda a dor que é beleza lhe copia a atrocidade e exige alimento ou esvai-se. Talvez se aquela rapariga, aquela que vejo no passeio, aquela que anda em círculos sem se aperceber - todas as pessoas marcadas pela dor que deixam entrar pelos olhos andam em círculos - talvez se aquela rapariga me magoar, talvez consiga acordar mais um pouco dessa dor de ontem em mim, mais um pouco dessa dor que apaga a outra. Ela entende do que lhe falo, ela entende, eu sei, ela entende porque tem lágrimas de gelo; as lágrimas de gelo são as lágrimas últimas, as que nos cortam para nos avisar que vamos ficar sem lágrimas, para nos avisar que os olhos vão ficar cheios dos restos mortais do coração; são, nos seus impiedosos golpes, o último aviso, a última esperança de redenção; a cara vai ficando marcada desses sulcos cortados pelo gelo; depois de secos, os sulcos, são como fossas na terra, muito feias, onde a água já não passa, fantasmas de rios, lembranças do abandono das carícias suaves de um leito azul. Ela sabe do que falo, a rapariga vulgar, e já a tenho cativa, mostrei-lhe a sua dor nos meus bolsos, estendeu as mãos para receber mais um pouco do que lhe dói, do que lhe dói tanto quando tem como quando lhe falta, abri a porta do carro e deixei-a entrar, temos muita dor para oferecer um ao outro.

12 comentários:

  1. Cada salto entre as tuas palavras, de uma para outra, dói.
    Como são 489 palavras, são 488 saltos.

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  2. Nós, seres Humanos, que temos a veleidade de nos afirmarmos ser eternos viajantes à procura do infinito dentro do universo de nós mesmos, raramente reconhecemos a frustração de apenas sermos capazes dum mero afloramento superficial.
    Somos uma capa brilhante a cobrir o inferno, ele existe sim e é bem no nosso interior onde poucos se atrevem a descer.
    Uma das mais importantes funções da memória é o esquecimento, e é preciso ter na memória a lembrança do esquecer. Quando nos esquecemos de esquecer, a lembrança não se esquece de mostrar que as escadas para o inferno estão exactamente no mesmo sítio onde as deixamos...

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  3. Eu gostava tanto de saber escrever como vós...

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  4. É. Tenho por aí umas dolorosas dores que passeio, também, pelo trottoir da vida. Mas são tão intensamente dolorosas e minhas que creio bem que sem elas talvez nem soubesse como viver. Deve ser por isso que se fala dos males que vêm por bem. E que o mundo tende para o equilíbrio...

    Mas, felizmente, perco frequentemente a noção da localização das escadas que o Charlie refere. Quase tão frequentemente como quando volto a recordá-la...

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  5. Sãozinha, :)


    não sou sádica mas é precisamente aí que quero chegar, em tudo o que escrevo, o que quero é que o leitor sinta. Espero conseguir aprender tanto que, um dia, lá chego. :)))

    Tu escreves muito bem. :)


    Beijos

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  6. Charlie, :)


    escrever faz com que eu nunca esqueça a escada para o meu inferno. Ela existe, sim. É pouco relevante, para a escrita, aquilo que me faz sentir; o meu objectivo final é fazer o outro sentir a sua própria escada do inferno quando o tento levar pela mão a descer a que digo que é a minha. Considero que um escritor é um Mestre, quando consegue dar-nos um pontapé, ao lermos as suas palavras, sem dó nem piedade, pela nossa própria escada abaixo. Um dia, quero ser Mestre. :)))

    Beijos

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  7. OrCa, :)


    É. Um mal que vem por bem. Às vezes penso que a minha vida foi toda errada, que escolhi todos os caminhos errados, que nada de útil se aproveitou dali. Depois lembro-me da dor, sem a dor não conheceria metade do que conheço dos outros, é pouco mas é muito, e não conheceria metade do que conheço de mim, é pouco mas é muito. Na parte mais funda de ser, há dor. :)))


    Beijos

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  8. O elevador tira o prazer do suor derramado pelo esforço dos lances da escada.
    De facto, Well, a missão é mesmo essa, a de mostrar a cada um onde guarda a escada- que finge esquecida- para o interior do seu inferno.
    Escreve mais sim, que quanto mais te leio, mais nas mãos do diabo me sinto...

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  9. De escadas, Sãozinha, "no pain, no gain". Eheheheheh


    Charlie, é o Diabo que nos tenta fazer esquecer as escadas, desistir da descida. Eheheheh Lá, no fundo, só há luz, conhecimento é Luz. Acho eu. :)


    Beijos

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  10. Isso da Luz é uma piada ao Charlie por ser benfiquista?

    (ihihihihih)

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